terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A VERDADE



Propondo-me falar da VERDADE, não sei o que dizer.
Com efeito, não sei o que é a verdade, para além de um antinómico da mentira.
Será que ao nos referirmos ao conceito de Verdade pretendemos referir-nos ao princípio dos princípios, à causa das causas?
Todavia, para mim, isso é Deus e eu não conheço Deus.
Mas não o conhecendo, não posso dizer, como Alberto Caeiro, que não acredite nele, porque acredito.
Caeiro dizia:
«Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro,
Dizendo-me Aqui estou!

(Isso é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Como o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.»

E mais uma vez me afasto de Alberto Caeiro, porque para mim «as árvores e as flores e os montes e o luar e o sol» são obra de Deus e não o próprio Criador.
Por isso, não o conhecendo, eu acredito n´Ele.
Diz Voltaire, no seu Dicionário Filosófico, que «Sob o império de Arcádio, Logomaco, teologal de Constantinopla, foi à Cítia e deteve-se no sopé do Cáucaso, nas férteis planuras de Zefirim, já nas fronteiras da Cólquida. O bom velhote Dondindac estava na sua grande sala baixa, entre o aprisco e a vasta granja; ajoelhado, e com ele também ajoelhados estavam a mulher, cinco filhos e outras tantas filhas, todos entoavam louvores a Deus, após um ligeiro repasto. - "Que fazes aí, idólatra?" perguntou-lhe Logomaco. - "Não sou idólatra", respondeu Dondindac. - "Hás de sê-lo, por força, pois és um cita e não um grego. Ora, dize-me cá, que entoavas tu nesse teu bárbaro linguajar de cita?" - "Todas as línguas são iguais, aos ouvidos de Deus", respondeu o cita; "louvávamos o Senhor, em nossos hinos." - "Que coisa estapafúrdia", admirou-se o teologal. "Uma família cita que reza a Deus sem nunca ter sido ensinada por nós!" E, sem mais aquela, iniciou uma conversa com o citado Dondindac, porque o teologal - valha-nos isso! - sabia um poucochinho da língua cita e o outro - ainda bem! - sabia seu naco de grego. Esta instrutiva palestra, meio em cita meio em grego, foi achada num manuscrito que se conserva (quase por milagre) na biblioteca de Constantinopla.
Foi como se segue:
LOGOMACO - Ora, vamos lá a ver se sabes o teu catecismo. Por que rezas a Deus?
DONDINDAC - É porque é justo adorar o Ser Supremo, que nos deu tudo quanto possuímos.
LOGOMACO - Não está nada mal observado, não senhor, para um bárbaro como tu! E que lhe pedes nas tuas orações?
DONDINDAC  - Agradeço-lhe todos os bens de que desfruto e também os males de que sofro; mas não lhe peço nada: Ele sabe melhor do que nós aquilo de que carecemos, e não é só por isso: temia pedir-lhe bom tempo enquanto o meu vizinho era muito capaz de lhe estar a pedir chuva.
LOGOMACO - Ah! Já estava mesmo à espera de que me dissesses qualquer tolice. Vamos recomeçar, mas com mais elevação. Ora dize-me lá, bárbaro duma figa, quem te disse que Deus existe, sim, que há um Deus?
DONDINDAC - A Natureza inteira.
LOGOMACO - Não basta. Que ideia fazes tu de Deus?
DONDINDAC - A ideia de que é o meu criador, o meu senhor, que me há-de recompensar se eu praticar o bem e castigar se fizer o mal.
LOGOMACO - Tudo o que dizes são frioleiras e lugares comuns! Vamos ao essencial, que é o que importa. Deus é infinito secundum quid, ou segundo a essência?
DONDINDAC - Não percebo cá disso.
LOGOMACO - Forte besta! Estúpido! Deus está nalgum lugar, ou fora de qualquer lugar, ou em toda a parte?
DONDINDAC - Não sei, não sei... Será como quiserdes.
LOGOMACO - Estúpido! Ignorante! Pode fazer com que o que foi não foi, e que um pau não tenha dois bicos? Vê o futuro como futuro ou como presente? Como procede Deus para fazer sair o ser do nada ou para aniquilar o ser?
DONDINDAC - Nunca pensei nisso...
LOGOMACO - Oh! Como és lorpa! Seja, há que ser humilde, ter a noção das distâncias. . . Dize-me cá, amigo, julgas que a matéria pode ser eterna?
DONDINDAC - E que me importa a mim que seja eterna ou não? Eu cá não tenciono existir eternamente! Deus sempre foi o meu senhor; deu-me a noção de justiça, hei-de obedecer-lhe; não pretendo de modo algum ser filósofo, quero ser apenas um homem.
LOGOMACO - Isto, com pinhas tão duras, dá um trabalhão! Bem, vamos lá a ver se, devagarzinho... por exemplo: quem é Deus?
DONDINDAC - Meu rei meu juiz e meu pai.
LOGOMACO - Não é nada disso que te estou a perguntar. Qual é a sua natureza?
DONDINDAC - Ser poderoso e bom.
LOGOMACO - Mas é corporal ou espiritual?
DONDIDAC - E como quereis que o saiba?!
LOGOMACO - O quê? ! Não sabes ao menos o que é um espírito?
DONDINDAC - Nem pouco nem muito! E de que é que isso me servia? Se o soubesse, seria mais justo? Seria melhor marido, melhor pai, melhor patrão, melhor cidadão?
LOGOMACO - Bem. Já estou a ver que tenho de te explicar duma vez por todas, tintim por tintim, o que é um espírito. Olha: um espírito é... é... assim uma coisa... é... Para outra vez te digo.
DONDINDAC - O meu medo é que me direis não aquilo que é mas o que não é. Agora, permiti-me que seja eu quem vos faça uma perguntinha. Aqui já há muito tempo, entrei num templo dos vossos. Explicai-me: por que pintais Deus com umas grandes barbaças?
LOGOMACO - Essa pergunta é muito difícil e necessita de muitas instruções preliminares.
Deste belo diálogo, retiro a ilação de que admirando os gregos, e não sendo da Cítia, concordo inteiramente com Dondindac. E com o seu Deus, criador e curador das coisas que nos rodeiam, independentemente da sua história, da sua natureza, e das suas qualidades.
Voltando ao tema da verdade, dou-me conta da mentira do Deus que em Roma nos é servido desde o concílio de Niceia pela igreja católica  que o nosso irmão Isaac Newton denominou de Anticristo, de “meretriz da Babilônia”, acreditando que todas as mentiras do mundo tinham começado nesse Concílio de 325, conduzido sob a égide do imperador Constantino, que impôs todos os dogmas de que a igreja se serviu para perseguir o livre pensamento, nomeadamente o pensamento de Deus, sempre coado pelos padres e bispos, tidos por únicos intermediários junto do Ente Supremo.
Mas então, sentindo a existência de Deus, quem é Ele, afinal?
Certa vez perguntaram a Albert Einstein, se ele acreditava em Deus. “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe”, respondeu ele, resposta que a mim também me serve.
Dizia o Deus do iluminista Espinoza:
“Pára de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida.
Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.
Pára de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa.
Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.
Pára de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau. O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria.
Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.
Pára de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não me podes ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho… Não me encontrarás em nenhum livro! Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho?
Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor.
Pára de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz… Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio.
Como te posso culpar se respondes a algo que eu pus em ti?
Como te posso castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez?
Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade?
Que tipo de Deus pode fazer isso?
Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti.
Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti.
A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia.
Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso.
Esta vida é a única coisa que há aqui e agora, e a única coisa que precisas.
Eu te fiz absolutamente livre.
Não há prémios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registo. Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.
Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho.
Vive como se não o houvesse.
Como se esta fosse a tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir.
Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei. E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não.
Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste… Do que mais gostaste? O que aprendeste?
Pára de crer em mim – crer é supor, adivinhar, imaginar.
Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti.
Quero que me sintas em ti quando beijas a tua amada, quando agasalhas a tua filhinha, quando acaricias o teu cachorro, quando tomas banho no mar.
Pára de louvar-me!
Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja? Me aborrece que me louvem. Me cansa que agradeçam.
Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo.
Te sentes olhado, surpreendido?… Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.
Pára de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim.
A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas.
Para que precisas de mais milagres?
Para que tantas explicações?
Não me procures fora!
Não me acharás.


Procura-me dentro… aí é que estou, batendo em ti.»

domingo, 28 de janeiro de 2018

Luís Pedro Viana



Vai para meia dúzia de anos que ele nos apareceu porta adentro, numa tarde cálida do meio do Verão, em que acontecia mais uma das costumadas tertúlias de poesia na Galeria Vieira Portuense. De lenço ao pescoço à moda de Salvador Dali, apresentava, como este, bigode de pontas afiadas que o surrealista de Figueres copiara de Diego de Velásquez.
Chegada a vez da declamação, tomou espaço a servir-lhe de palco e, em pose de teatro, tirou, sabe-se lá de onde, uns minúsculos altifalantes que ligou à corrente e a um aparelho, que servia de telefone, anunciando que as novas tecnologias também serviam a cultura. Perante a expectativa de todos, aquilo acendeu uma pequena luz vermelha, deu um silvo angustiante e apagou-se. À inquietação dos demais, juntou o autor a sua própria perplexidade, tal qual um Jacinto contrariado face à avaria da engrenagem que lhe deixara o assado encravado entre a cozinha e o sobrado do número 202, dos Champs-Élysées, de que se fala em “As Cidades e as Serras” de Eça de Queirós.
Recomposto, sem perder a pose de quem se acha bem acima da falibilidade das coisas terrenas, o pintor, escritor e poeta, mostrou naquele espaço o seu estro numa primeira de muitas vezes, já que nunca mais deixou de frequentar esta casa de arte:
“Na alegria de viver e de comunicação simples,
Fazia a beleza da Vida.
[…]
Dai-nos lugar junto dele
Quando for a vez da Eternidade!”

Luís Pedro Viana não nasceu em 1943. Nasceu muito mais tarde, naquela idade em que a humanidade descobre que “nem só de pão vive o homem”, que em Altamira ou em Chauvet começou a pintar nas cavernas e Alberto Caeiro começou a escrever:
“Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.”

Porque há um tempo em que a Bíblia se abre em Marcos e nos pergunta: “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se vai perder a alma?”
Armado com as armas que a vida lhe deu, nos bancos das escolas, no atelier de seu pai, nas sete partidas da vida, nas viagens pelo mundo, no estudo atento do que é ensinado nos museus, na confraternização com artistas dos vários mesteres, este português aqui, sem mestre mas com jeito, (como diria José Fanha), renascido em seus sonhos, é hoje um artista respeitado nas artes e nas letras, simples como os sábios, amante da natureza e do lado bom da vida, como ensinavam os epicuristas, podendo dizer como Salvador Dali “…estou pintando quadros que me fazem morrer de alegria, estou criando com absoluta naturalidade, sem a menor preocupação estética, estou fazendo coisas que me inspiram com uma profunda emoção e estou tentando pintá-los com honestidade”.
Entretanto, Moreira da Cunha, ele, sim, nascido em 1943, vai palmilhando a vida no seu condado, indiferente aos Invernos já vividos, porque, como dizia Epicuro de Patmos, “enquanto eu sou, a morte não é; e quando ela for, eu já não serei. Porque deveria temer o que não pode ser enquanto sou?”.