No meu tempo
de Coimbra, o dinheiro mal dava para cama, mesa e roupa lavada. E para as
sebentas e o café diário. TV só no café. No canal 2 tinham as terças-feiras
clássicas. Naquela noite de chuva, passava este filme enorme, o primeiro e
último dos 3 que os comunistas italianos encomendaram a Visconti. Tomei horas e
interrompi a reposição de livros nas prateleiras da UNITAS que me ocupava o serão,
atravessei a rua e chapei os olhos da TV2. No último intervalo eram já 2 horas
da madrugada, estava eu vidrado no ecrã e o dono do café vidrado em mim. Quando
ele julgava que era o fim do filme, a interrupção não passava de mais um
intervalo. «Ah, não, pá, amanhã tenho de estar aqui às 6 horas, tem lá
paciência!» Pedi desculpa e saí para a chuva miúda. Ao chegar ao fim da Rua da
Sofia, estava uma TV ligada na montra de uma loja de electrodomésticos.
Sintonizada na TV2, meu anjo da guarda! Chapei o nariz na montra e continuei a
ver o Terra Treme de Visconti. Chegou-se um cívico e perguntou-me com ar
provocador: "Vais assaltar a loja?" Despertando gaguejei que não, que
estava a ver o filme. "A esta hora? À chuva? Os teus documentos?".
Não tinha os documentos ali. Estavam na jaleca que deixara em casa. Um segundo
que alguém mos traria, era só telefonar, explicava-me eu já a dirigir-me para a
cabine que estava junto à Câmara Municipal. "Telefonas do posto". Era
ali à beira e até ficava mais barato. Fomos os dois por ali acima, ele a
filar-me o braço esquerdo com receios não sei de quê. Chegados ao telefone,
ninguém atendia. O PC andava toda a noite pelas reuniões dos MLs. O Paulinho
estaria junto do inseparável violão cujo paradeiro era desconhecido. O P tinha
namorada que nem sempre o libertava a horas cristãs. Mas o Jeiro? A dormir pela
certa. 4 da manhã, 5 da manhã e o cívico com cara de caso, cada vez mais certo
que ali havia coisa. Foi o Jeiro quem atendeu finalmente e em 30 minutos lá
tinha eu os meus documentos libertadores. Anos mais tarde vi a Terra Treme, com
os pés quentes, e sem chuva na cabeça.