quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

A BRUXA DE GONDARÉM




A BRUXA DE GONDARÉM

Cobria-se com três xailes e duas gabardinas. Tinha um discurso desconexo, mas era firme nas suas certezas. Se contemporizava com os pobres humanos tal devia-se às necessidades elementares da sobrevivência.
Foi o caso do Dr. Balreira.
         - Sr. Balreira, - a velhota não se prendia com senhorias, nem com outros títulos - venho aqui de mando do sr. Guerra – e enquanto tal dizia a Sra. Ana Trinta cuspia-se toda, já que o seu modo de falar produzia uma salivação de tal modo abundante e falava com a boca tão fechada que os sons lhe saíam sibilados misturados com abundante saliva.
         Arrepiava vê-la falar e as palavras percebiam-se-lhe a muito custo.
         - Diga lá mulher, o que lhe fizeram – perguntava o velho causídico já enojado das partículas de saliva que se lhe iam depositando nos códigos espalhados sobre a secretária.
- Olhe, senhor, recebi isto em casa para pagar a cabeça da senhoria, mas não vou nisso.
- A cabeça da senhoria?
Fora o caso ter a senhoria cortado o arame do estendal da roupa, com o argumento de que o coradouro não podia ser usado pela caseira, por não estar incluído no contrato de arrendamento.
Cortado o arame, foi o mesmo reposto no sítio pela bruxa – a mulher era a bruxa de Gondarém, com valimentos propagandeados até aos confins da comarca, como depois se veio a saber.
Não estava a reparação ainda concluída quando aos pés da criatura cai um calhau do tamanho de um paralelepípedo do calcetamento das estradas. A intenção não podia ser outra se não a de a fazer estatelar ali mesmo, segundo a constatação iluminada da vidente.
Todavia a senhoria era uma mulherona de trinta e poucos anos e a caseira já passava dos setenta. Por isso viu-se esta obrigada a aguçar o engenho e vai de acertar com o companheiro uma emboscada à matulona.
- E então como é que fez isso – interpelava-a o Dr. Balreira a ver se lhe encurtava a crónica.
Mas a velha entendia ser importante elencar todos os pormenores.
- Esperámo-la no quinteiro, numa passagem escura que dá para o alpendre. O meu António apanhou-a por trás, segurou-lhe as mãos e eu, que já estava preparada com uma acha, abri-lhe a cabeça, para ela aprender.
- Ó mulher, você fez isso?
- Fiz e volto a fazer se ela voltar a tirar-me o arame.
- E disse isso na judiciária?
- Disse sim senhor. Que lhe abria o miolo se ela voltasse ao feito.
Não era a primeira vez que o velho advogado amaldiçoava o dia em que escolheu a carreira. Umas partilhas aqui, uns despejos acolá até que não lhe desagradava. Mas esta gente dos correccionais fazia-lhe perder a paciência.
A conformar-se com o azar foi dizendo:
- Olhe mulher traga-me o nome de duas ou três testemunhas para abonar o bom comportamento.
- Testemunhas? Para que preciso eu de testemunhas? A minha testemunha é Jesus Cristo que está no céu e que tudo viu! – respondeu a velha que parecia escandalizada.
- Ora adeus! – vociferava o causídico fora de si – faz favor de desamparar a loja que não estou para a aturar!
- Não querem ver o alma do diabo do homem que me vai desfeitear? – dizia ela sem arredar pé, olhando-o como quem olha um sandeu.
- Rua!
Os estagiários mal continham o riso, menos o mais novo que assistia à cena com cara de caso. O Dr. Balreira olhou para eles e amainou-se-lhe o azedume contagiado pelo ar de divertimento. Ao reparar no ar circunspecto do estagiário mais recente que por ali pontificava há menos de uma semana, virou-se para a criatura:
- Olhe, espere aí. Aqui o dr…- dirigindo-se ao estagiário – como é que se chama? – tornando à velha – aqui o Dr. Inácio vai tratar-lhe do assunto!
Foi a risota geral. O Dr. Inácio, acabadinho de sair da Faculdade, não distinguia um correccional de um criminal, nunca tinha ido ao Palácio da Justiça, aportara à cidade vindo de uma aldeia interior e, por tudo isso, era o menos provável defensor dos interesses da bruxa de Gondarém.
O Dr. Inácio é que não gostou da brincadeira e ali mesmo pensou em mudar de patrono.
Saiu, quase arrastando a velha, que nesta altura dos acontecimentos quedara-se atarantada, mal se apercebendo do que se estava a passar.
- Ó minha senhora, dê cá os papéis e volte amanhã à mesma hora!
- Ai agora é você que vai tratar do assunto? Mandaram-me para o Sr. Guerra, depois para o sr. Balreira, agora para o sr. Inácio … nem Cristo de Anás para Caifás!
O papel continha uma notificação para que se pagasse a despesa do Hospital de Santo António relativa à assistência prestada à senhoria da Ana Trinta. Vinha da Comissão Arbitral de Assistência.
Comissão Arbitral? O Dr. Inácio tinha frescas na memória quase todas as matérias que lhe ensinaram em Coimbra. Mas em nenhuma delas se falava em comissão arbitral de assistência.
Socorreu-se da lista telefónica. E lá vinha a indicação da rua da Constituição, número tal, rés-do-chão. Tomou o autocarro com a notificação na mão e acercou-se da secretaria.
- O senhor desculpe, mas a minha avó recebeu esta notificação…
- Deixe lá ver. Isto é para pagar uns curativos no hospital.
- Mas quem teve a culpa foi a outra que se meteu com a minha avó.
- Ai foi? E não há processo a correr?
- Há sim senhor; em Matosinhos.
- Então é fazer um requerimento que a gente manda para lá o expediente. Ó Tozé dá aqui uma norma a este rapaz…
Nem o Dr. Balreira perguntou nada, nem o estagiário se descoseu.
Mas quando chegou a D. Ana Trinta, foi um Dr. Inácio seguro de si que lhe disse:
- Pronto, minha senhora, quanto ao Hospital estamos arrumados. Quando vier a marcação do julgamento apareça por cá. E se puder arranjar duas ou três testemunhas só para dizer que a senhora é boa pessoa, traga-me os nomes, estado e residência.
- Ó menino, já disse que eu não preciso de testemunhas. Nosso Senhor que do Céu vê tudo bem sabe que eu tenho razão.
- Pronto, pronto, não se aborreça, a senhora é que sabe. Boa tarde e até à próxima.
O Patrono estava admirado com a desenvoltura do estagiário.
- Então, Dr. Inácio, como é que deu a volta ao assunto?
O Candidato à Advocacia explicou-lhe tim-tim por tim-tim os termos do requerimento, as leis invocadas e o resultado esperado como se nada daquilo tivesse novidade para si. O Dr. Balreira passou a dar-lhe mais atenção e chegava a inquiri-lo sobre algumas das novidades do Código de 1966, já que no que estava calhado era o Código de Seabra muito mais rigoroso ao jeito da Escola de Viena.
Veio a notificação da marcação do julgamento e com ela a Ana Trinta embrulhada nos seus xailes, agora com um lenço preto amarrado à volta da cabeça.
- Parece impossível, mas vamos ser mesmo julgados.
O Dr. Inácio explicou-lhe que só podia faltar ao julgamento duas vezes, já que à terceira o julgamento far-se-ia mesmo sem a presença dela.
- E se faltar duas vezes eu e duas vezes o meu homem?
- O julgamento é adiado quatro vezes.
- E vai faltar?
- Claro. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.
- A senhora é quem sabe.
- E não esteja à espera de testemunhas, que não vou incomodar ninguém.
. Ó minha senhora, quanto a isso já estamos acertados.
- Quer-me parecer que é mais fino que o Sr. Balreira.
- O Sr. Dr. Balreira acha que é preciso testemunhas e também eu acho, mas a senhora é teimosa…
Nem deixou acabar a conversa, dando meia volta e desaparecendo na penumbra das escadas.
No dia designado para a audiência de julgamento lá compareceu a Ana Trinta sem mudar um detalhe à indumentária do costume, acompanhada do Dr. Inácio, arrumando-se ambos a um canto do átrio do tribunal.
Feita a chamada, responderam a queixosa, o seu advogado e dezasseis testemunhas de acusação. Por falta do arguido foi a audiência adiada para daí a seis meses.
Mais ou menos da mesma maneira ocorreram as coisas no dia da segunda marcação do julgamento. Na terceira, faltou a Ana Trinta e compareceu o marido. E uma outra vez, em quarta data designada para o mesmo efeito, também a audiência ficou adiada por falta da arguida, apesar de estarem presentes todas as outras pessoas convocadas para o efeito, incluindo as 16 testemunhas arroladas pela queixosa.
Até que chegou a data da quinta marcação verificando o oficial de diligências a presença de ambos os arguidos e respectivo defensor, a queixosa e respectivo advogado, bem como todas as testemunhas, que eram só as da acusação, já que pela defesa não tinha sido apresentado rol.
Sentia-se no rosto da ofendida um certo ar vitorioso, de quem acha finalmente chegada a hora do juízo final. O próprio advogado tinha dirigido um remoque ao jovem Inácio, comentando que para tudo havia uma hora e que o tempo das manobras dilatórias tinha acabado.
Os arguidos sentavam-se ambos no banco dos réus, ele absorto, quase indiferente ao que se ia passar, e ela com o ar fixo no Juiz, com cara de quem espera a oportunidade de explicar as razões da inocência.
O Juiz, rapaz novo e esperançoso na salvação do mundo, aparentava o ar solene de um dominicano, quiçá a magicar no correctivo que havia de ministrar aquela gente que parecia andar a brincar com a Justiça.
         - Levantem-se lá. Primeiro a senhora. Às perguntas que vou fazer é obrigada a responder com verdade…
         Vendo chegada a hora a Ana Trinta retirou um denegrido paralelepípedo da sacola e empunhando-o na direcção do Juiz, vociferou:
         - Olhe, menino, toda esta merda começou com isto!
         Depois de uns segundos de estupefacção geral, o Juiz, virando-se para o Dr. Inácio, questionou:
         - Mas que é isto, Sr. Dr.?
         - Sr. Dr. Juiz, eu já suspeitava da sanidade mental da minha constituinte. Pretendo requerer exame às faculdades mentais da arguida.
         O advogado da queixosa não atentou no que disse:
         - Ó Sr. Dr., por amor de Deus. Aqui na comarca esses exames demoram para cima de dois anos!
         - Ó Sr. Dr. Juiz – gritava a queixosa do fundo da sala ao tomar sentido do que estava a acontecer – eu desisto, eu perdoo, eu pago o que tiver de pagar, mas quero acabar com o processo. É a quinta vez que venho ao tribunal. Tenho de pagar o dia e o almoço a 16 pessoas fora o transporte. Já não posso…
         O Juiz nem acreditava no que estava a ouvir. Uma desistência numa embrulhada daquelas, com uma arguida sem juízo, vinha mesmo a calhar.
         - Levante-se lá a senhora – dizia ele para a ofendida deitando os olhos ao advogado. – Se quer desistir tem todo o direito a fazê-lo! Não quer falar com o seu advogado?
         Só então o advogado caiu em si, saindo do espanto em que caíra com o evoluir dos acontecimentos.
         - Não há que falar. Se posso desistir eu desisto. Está desistido.
         - A senhora é quem sabe. Levantem-se os arguidos. Aceitam a desistência?
         - Aceitam sim – adiantou-se o defensor, já que dos arguidos o marido continuava com o seu ar absorto e indiferente e a esposa não tirava os olhos do Juiz a medir os acontecimentos.
         - Podem então ir em paz. Está encerrada a audiência.
         A velha recolheu o pedregulho na sacola, aconchegou-se com o xaile e virou-se para o Dr. Inácio:
         - Eu não lhe dizia que não eram precisas testemunhas?


Agostinho Costa

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