domingo, 22 de março de 2020

UM MANJAR EM CAMPO DE VÍBORAS


UM MANJAR EM CAMPO DE VÍBORAS
Quando comecei a trabalhar não almoçava, quando muito comia um prego ou cachorro acompanhado a leite frio. Era hábito que trazia de Coimbra onde abusava do leite que, além de matar a sede, alimentava.
Naquela tarde de frio vinha do tribunal de Vimioso pela EN 219 e, passada a adrenalina do julgamento, começava a sentir vontade de trincar qualquer coisa. À altura de Campo de Víboras vi uma porta aberta de meio café meu adega chamando-me a atenção uma lareira acesa. Animou-se-me a alma e entrei. “Uma sandes mista, se faz favor”, a mulher - uma destas mulheres de meia-idade, polivalentes atendendo ao balcão, à cozinha e ao mais que houvesse para fazer – olhou-me de alto a baixo a estranhar o meu aspecto de gente que não era dali, sem sinal do que por ali andaria a fazer. “Que quer na sande?”Sei lá! Um bocado de queijo com fiambre”?. “Não tenho fiambre. Tenho aquela marmelada; o bolor é próprio”.  Gelou-se-me a alma apesar da chama vibrante que enchia a lareira. Ela percebeu o meu sentar-me desanimado, a uma mesa perto da fogueira.
Subiu a um banco e deitou a mão a uma serapilheira fumada de onde desembrulhou um presunto ao qual faltavam já algumas talhadas. Preparou um prato com dois bocados de presunto, um pedaço generoso de triga-milha e uma malga de vinho tinto. E perguntou-me: “Em vez da sande não quer antes uma alheia feita aqui em casa?”.
A sêmea e o presunto de longe que me chegavam. Acrescentar a alheira já era pantagruélico. Mas esse produto da imaginação dos cristãos-novos caía-me no goto. Fiquei indeciso a olhar a mulher que já me virava as costas. Mas parou para me perguntar se a acompanhar o fumado queria um ovo estrelado. Que não, disse eu já conformado e recomposto da desilusão! Mas, com a humildade de quem sabe obedecer a quem manda, expliquei-lhe que não queria o vinho, mas talvez um copo de leite frio. “Leite frio com este tempo? Não tenho leite. Tenho cerveja, sumos … já venho ver o que quer para beber” e foi tratar da alheira.
Veio logo de seguida com a alheira e uma pequena trempe que pôs ao lume com o petisco em cima. “Traga uma larangina c, s.f.f”, “Já venho, já venho”, disse ela e desapareceu pelas entranhas do resto da casa.
Fiquei só naquele café de aldeia, a degustar o pão excelente, o presunto excelente, e o excelente odor da alheia a rechinar sobre as brasas. Precisava de beber alguma coisa. “Ó se faz favor?”, chamei para dentro a ver se a mulher aparecia. Não apareceu.
Levei a malga aos lábios e o gole foi maior do que pretendia. Mas soube-me bem. De tal modo que quando ela me trouxe a alheira a fumegar já não lhe disse nada, nem ela me perguntou, reparando na malga do vinho que já ia a meio.
Foi um manjar que me soube a pouco. E a trempre esquecida nas brasas rescendia a gordura de assado!

Ó faz favor! Faz favor?”. Desta vez a mulher acudiu ligeira com uma garrafinha redonda de Larangina C, ainda em uso na altura. “É pena aquelas brasas! Não tem uma febrinha?”. “Febras não tenho, mas arranjo-lhe uma postinha de vitela”. “E outra malga de vinho” conclui eu, dando graças ao santo que me fez parar naquele tasco em Campo de Víboras.

A TERRA TREME(U)


No meu tempo de Coimbra, o dinheiro mal dava para cama, mesa e roupa lavada. E para as sebentas e o café diário. TV só no café. No canal 2 tinham as terças-feiras clássicas. Naquela noite de chuva, passava este filme enorme, o primeiro e último dos 3 que os comunistas italianos encomendaram a Visconti. Tomei horas e interrompi a reposição de livros nas prateleiras da UNITAS que me ocupava o serão, atravessei a rua e chapei os olhos da TV2. No último intervalo eram já 2 horas da madrugada, estava eu vidrado no ecrã e o dono do café vidrado em mim. Quando ele julgava que era o fim do filme, a interrupção não passava de mais um intervalo. «Ah, não, pá, amanhã tenho de estar aqui às 6 horas, tem lá paciência!» Pedi desculpa e saí para a chuva miúda. Ao chegar ao fim da Rua da Sofia, estava uma TV ligada na montra de uma loja de electrodomésticos. Sintonizada na TV2, meu anjo da guarda! Chapei o nariz na montra e continuei a ver o Terra Treme de Visconti. Chegou-se um cívico e perguntou-me com ar provocador: "Vais assaltar a loja?" Despertando gaguejei que não, que estava a ver o filme. "A esta hora? À chuva? Os teus documentos?". Não tinha os documentos ali. Estavam na jaleca que deixara em casa. Um segundo que alguém mos traria, era só telefonar, explicava-me eu já a dirigir-me para a cabine que estava junto à Câmara Municipal. "Telefonas do posto". Era ali à beira e até ficava mais barato. Fomos os dois por ali acima, ele a filar-me o braço esquerdo com receios não sei de quê. Chegados ao telefone, ninguém atendia. O PC andava toda a noite pelas reuniões dos MLs. O Paulinho estaria junto do inseparável violão cujo paradeiro era desconhecido. O P tinha namorada que nem sempre o libertava a horas cristãs. Mas o Jeiro? A dormir pela certa. 4 da manhã, 5 da manhã e o cívico com cara de caso, cada vez mais certo que ali havia coisa. Foi o Jeiro quem atendeu finalmente e em 30 minutos lá tinha eu os meus documentos libertadores. Anos mais tarde vi a Terra Treme, com os pés quentes, e sem chuva na cabeça.

Café Brasil



Naquele tempo era assim o Café Brasil ao lado da estação de S. Bento! Foi da primeira vez que fui ao Porto, antes da escola e da catequese, teria 4 ou 5 anos. Não sei porquê, calhara-me essa sorte, já que quem acompanhava a minha mãe ao Pinto Magalhães, Banqueiros, a dois passos dali, era o meu irmão mais velho mais espevitado e com quase 2 anos a mais. Não sei com que periodicidade, mas amiúde, chegavam do outro lado do mar, 3 cheques, poupanças do meu pai, que por lá “vergava a mola” em obras de zimbre, à frente de um pelotão de gente tratada “ao metro”. «O maior pões no banco, o mais pequeno dás ao meu pai, o outro é para os gastos. Mas vê se remedeias com esse, que a vida aqui é dura!» admoestava ele na carta que capeava os títulos do banco, não vá o diabo tecê-las e dar na cabeça da mulher gastar o pecúlio na costureira e em lambarices. O aviso devia doer-lhe, pois ele tinha obrigação de saber com quem lidava. Mas não se queixava. Respondia-lhe da forma costumeira: «Querido Manuel, espero que ao receberes desta… Nós por cá todos bem.». Nunca lhe falou do trasorelho dos putos, das gripes, do pai quando partiu a clavícula, da vaca que morreu ao parir… «nós por cá todos bem»! Nunca pôs em causa que a vida lá fosse dura. Mas também nunca lhe falou na vida duríssima que por cá levávamos. A pequena quinta de 4 hectares andava que nem um brinco, como um brinco as ribeiras de fora. Criação e gado grosso havia para dar e vender, bem como larga variedade de produtos hortícolas e de fruta. Por isso não faltava a uma feira, ao mercado de Ovar aos Sábados de manhã, à feira de Paçô aos Sábados de Tarde, ao mercado da Vila, aos Domingos, à feira de Espinho às segundas-feiras! E também às mensais ou bi-mensais, às dos 4 em Arrifana, às dos 14, em Ovar onde se negociava melhor o gado, à de Salreu onde se compravam os bácoros para criar… À Palhaça ia comprar semente para revender em casa.
Por isso não admira que depositasse os 3 cheques, acrescentando-lhe mais algum do que ela própria ganhava e retirava dos gastos. Pegava pela mão do filho e descia a rua Nova, atravessava Arada e tomava o comboio no apeadeiro da Carvalheira, saindo no de General Torres, porque atravessar a “D. Maria” ficava mais caro. Naquele dia tirou os bilhetes para S. Bento, porque chovia e estava um frio de rachar.
Para mim foi um dia de festa. Andar de comboio, ver as paisagens nunca vistas a fugir em sentido contrário, saltar de uma janela para outra para não deixar nada por escrutinar, era cumprir-se o sonho dos sonhos.
A minha estatura mal dava para chegar às janelas. Mas ao longo da carruagem havia uma caixa de ferro com não menos de 30 cm de altura onde eu me empoleirava para ver melhor. Ainda por cima estava quentíssima, porque a sua função era acondicionar as resistências incandescentes que lá dentro produziam o calor que aquecia o compartimento andante.
Chegados ao destino encarreiramos para a porta norte que nos encaminhava para o Pinto Magalhães Banqueiros, não muito longe dali, fustigados por uma aragem fria inaudita. Foi então que aconteceu: as minhas queixadas iniciariam um vertiginoso bater de dentes sem controlo. Mas mais ritmado que flamenco em gitaneria sevilhana. «Fecha a boca, rapaz». «Tá, tá, tá, não, tá, tá, posso, tá, tá, tá», disse eu sem conseguir travar os queixos!

Empurrou-me para este Café Brasil, mesmo ali ao nosso lado e pediu um café. Quando a minúscula chávena chegou, admirou-se ela mais do que eu. «Só isto?». «Então como queria a Senhora», questionava o homem com catarro, as mãos engrunhadas e a cara de enfado. «Deixe estar. É que nós lá em casa tomamos o café numa malga grande», referindo-se à mistura com que começávamos o dia. Eu tomei de um trago o café quente. Entretanto deu-se o milagre: as queixadas pararam como por milagre, o frio foi-se e senti uma euforia que nunca me deixou esquecer este café Brasil, o primeiro café da minha vida!