UM MANJAR EM CAMPO DE VÍBORAS
Quando comecei a trabalhar não
almoçava, quando muito comia um prego ou cachorro acompanhado a leite frio. Era
hábito que trazia de Coimbra onde abusava do leite que, além de matar a sede,
alimentava.
Naquela tarde de frio vinha do
tribunal de Vimioso pela EN 219 e, passada a adrenalina do julgamento, começava
a sentir vontade de trincar qualquer coisa. À altura de Campo de Víboras vi uma
porta aberta de meio café meu adega chamando-me a atenção uma lareira acesa.
Animou-se-me a alma e entrei. “Uma sandes
mista, se faz favor”, a mulher - uma destas mulheres de meia-idade,
polivalentes atendendo ao balcão, à cozinha e ao mais que houvesse para fazer –
olhou-me de alto a baixo a estranhar o meu aspecto de gente que não era dali, sem
sinal do que por ali andaria a fazer. “Que
quer na sande?” “Sei lá! Um bocado de
queijo com fiambre”?. “Não tenho
fiambre. Tenho aquela marmelada; o bolor é próprio”. Gelou-se-me a alma apesar da chama vibrante
que enchia a lareira. Ela percebeu o meu sentar-me desanimado, a uma mesa perto
da fogueira.
Subiu a um banco e deitou a mão a
uma serapilheira fumada de onde desembrulhou um presunto ao qual faltavam já
algumas talhadas. Preparou um prato com dois bocados de presunto, um pedaço
generoso de triga-milha e uma malga de vinho tinto. E perguntou-me: “Em vez da sande não quer antes uma alheia
feita aqui em casa?”.
A sêmea e o presunto de longe que
me chegavam. Acrescentar a alheira já era pantagruélico. Mas esse produto da
imaginação dos cristãos-novos caía-me no goto. Fiquei indeciso a olhar a mulher
que já me virava as costas. Mas parou para me perguntar se a acompanhar o
fumado queria um ovo estrelado. Que não, disse eu já conformado e recomposto da
desilusão! Mas, com a humildade de quem sabe obedecer a quem manda, expliquei-lhe
que não queria o vinho, mas talvez um copo de leite frio. “Leite frio com este tempo? Não tenho leite. Tenho cerveja, sumos … já
venho ver o que quer para beber” e foi tratar da alheira.
Veio logo de seguida com a alheira
e uma pequena trempe que pôs ao lume com o petisco em cima. “Traga uma larangina c, s.f.f”, “Já venho, já venho”, disse ela e
desapareceu pelas entranhas do resto da casa.
Fiquei só naquele café de aldeia,
a degustar o pão excelente, o presunto excelente, e o excelente odor da alheia
a rechinar sobre as brasas. Precisava de beber alguma coisa. “Ó se faz favor?”, chamei para dentro a
ver se a mulher aparecia. Não apareceu.
Levei a malga aos lábios e o gole
foi maior do que pretendia. Mas soube-me bem. De tal modo que quando ela me
trouxe a alheira a fumegar já não lhe disse nada, nem ela me perguntou,
reparando na malga do vinho que já ia a meio.
Foi um manjar que me soube a
pouco. E a trempre esquecida nas brasas rescendia a gordura de assado!
“Ó faz favor! Faz favor?”. Desta vez a mulher acudiu ligeira com uma
garrafinha redonda de Larangina C, ainda em uso na altura. “É pena aquelas brasas! Não tem uma febrinha?”.
“Febras não tenho, mas arranjo-lhe uma
postinha de vitela”. “E outra malga
de vinho” conclui eu, dando graças ao santo que me fez parar naquele tasco
em Campo de Víboras.