Naquele
tempo era assim o Café Brasil ao lado da estação de S. Bento! Foi da primeira
vez que fui ao Porto, antes da escola e da catequese, teria 4 ou 5 anos. Não
sei porquê, calhara-me essa sorte, já que quem acompanhava a minha mãe ao Pinto
Magalhães, Banqueiros, a dois passos dali, era o meu irmão mais velho mais
espevitado e com quase 2 anos a mais. Não sei com que periodicidade, mas amiúde,
chegavam do outro lado do mar, 3 cheques, poupanças do meu pai, que por lá “vergava
a mola” em obras de zimbre, à frente de um pelotão de gente tratada “ao metro”.
«O maior pões no banco, o mais pequeno
dás ao meu pai, o outro é para os gastos. Mas vê se remedeias com esse, que a
vida aqui é dura!» admoestava ele na carta que capeava os títulos do banco,
não vá o diabo tecê-las e dar na cabeça da mulher gastar o pecúlio na
costureira e em lambarices. O aviso devia doer-lhe, pois ele tinha obrigação de
saber com quem lidava. Mas não se queixava. Respondia-lhe da forma costumeira: «Querido Manuel, espero que ao receberes desta…
Nós por cá todos bem.». Nunca lhe falou do trasorelho dos putos, das
gripes, do pai quando partiu a clavícula, da vaca que morreu ao parir… «nós por cá todos bem»! Nunca pôs em
causa que a vida lá fosse dura. Mas também nunca lhe falou na vida duríssima
que por cá levávamos. A pequena quinta de 4 hectares andava que nem um brinco,
como um brinco as ribeiras de fora. Criação e gado grosso havia para dar e
vender, bem como larga variedade de produtos hortícolas e de fruta. Por isso
não faltava a uma feira, ao mercado de Ovar aos Sábados de manhã, à feira de
Paçô aos Sábados de Tarde, ao mercado da Vila, aos Domingos, à feira de Espinho
às segundas-feiras! E também às mensais ou bi-mensais, às dos 4 em Arrifana, às
dos 14, em Ovar onde se negociava melhor o gado, à de Salreu onde se compravam
os bácoros para criar… À Palhaça ia comprar semente para revender em casa.
Por
isso não admira que depositasse os 3 cheques, acrescentando-lhe mais algum do
que ela própria ganhava e retirava dos gastos. Pegava pela mão do filho e
descia a rua Nova, atravessava Arada e tomava o comboio no apeadeiro da
Carvalheira, saindo no de General Torres, porque atravessar a “D. Maria” ficava
mais caro. Naquele dia tirou os bilhetes para S. Bento, porque chovia e estava
um frio de rachar.
Para
mim foi um dia de festa. Andar de comboio, ver as paisagens nunca vistas a
fugir em sentido contrário, saltar de uma janela para outra para não deixar
nada por escrutinar, era cumprir-se o sonho dos sonhos.
A
minha estatura mal dava para chegar às janelas. Mas ao longo da carruagem havia
uma caixa de ferro com não menos de 30 cm de altura onde eu me empoleirava para
ver melhor. Ainda por cima estava quentíssima, porque a sua função era acondicionar
as resistências incandescentes que lá dentro produziam o calor que aquecia o
compartimento andante.
Chegados
ao destino encarreiramos para a porta norte que nos encaminhava para o Pinto
Magalhães Banqueiros, não muito longe dali, fustigados por uma aragem fria
inaudita. Foi então que aconteceu: as minhas queixadas iniciariam um vertiginoso
bater de dentes sem controlo. Mas mais ritmado que flamenco em gitaneria sevilhana.
«Fecha a boca, rapaz». «Tá, tá, tá,
não, tá, tá, posso, tá, tá, tá», disse eu sem conseguir travar os queixos!
Empurrou-me
para este Café Brasil, mesmo ali ao nosso lado e pediu um café. Quando a
minúscula chávena chegou, admirou-se ela mais do que eu. «Só isto?». «Então como queria
a Senhora», questionava o homem com catarro, as mãos engrunhadas e a cara
de enfado. «Deixe estar. É que nós lá em
casa tomamos o café numa malga grande», referindo-se à mistura com que
começávamos o dia. Eu tomei de um trago o café quente. Entretanto deu-se o milagre:
as queixadas pararam como por milagre, o frio foi-se e senti uma euforia que
nunca me deixou esquecer este café Brasil, o primeiro café da minha vida!
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