terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

DE QUANDO JOSÉ GONZALEZ COLLADO FOI EXPOR NO PAÇO DOS DUQUES DE BRAGANÇA



José González Collado, pintor do Norte, natural de Ferrol, deambulou por Madrid, Norte de África, Paris, até voltar novamente ao Ferrol onde reside e continua a produzir Arte, apesar dos seus 83 anos idade.
Da sua terra absorve as brumas, as neblinas, os azuis e cinzas do mar, o enevoado dos dias chuvosos, as mulheres sensuais e misteriosas enraizadas nas lendas milenares dos Celtas, suas memórias e ancestrais costumes. E a saudade nascida das perdas no mar.
Nos seus quadros é notória a influência cubista, o rigor do traço delineado com o saber dos mestres e a exímia mestria na conjugação das cores.
Destes parâmetros só podiam emergir obras sérias, nascidas para ficarem para a posteridade, como estas que decoram os muros deste vetusto Paço.
A sua terra ditou-lhe também os temas: cenas do quotidiano galego, paisagens inspiradas na sua terra mátria, as feiras, os ofícios, os gaiteiros e outros músicos ligados a um povo alegre e divertido, os Cristos agonizantes na cruz das procissões sentidas da Semana Santa.
Do seu gosto pela intemporalidade do eterno feminino surgem as madonas, as maternidades, os corpos nus, sensuais e belos.
E sobretudo o testemunho sentido por quem gosta de arte, que coloca na tela a sua alegria de viver, a sua experiência da vida, a sua memória dos tempos idos, a sua alma.
Pelos primórdios dos anos 60, Manuel Oliveira Guerra lançou-se na aventura da Revista Céltica, a congregar os espíritos de ambas as pátrias da velha mátria Galega, a Galécia romana, a suévia visigótica, a Galiza de Afonso VI.
González Collado foi dos que acudiram à chamada de Oliveira Guerra, colaborando com o movimento em marcha, visitando Portugal nessa altura, convivendo com artistas portugueses, entre eles o saudoso escultor Barata Feyo, o esclarecido autor da estátua da mais galega de todas as poetisas da Galiza, Rosalia de Castro.
Por esse tempo, em 1960, Manuel Oliveira Guerra, na sua revista Céltica, dizia deste pintor que agora nos visita: «Collado, com efeito, é um desenhador magnífico, fácil, rapidíssimo, sóbrio e gracioso, dotado duma maestria e de um sortilégio que prendem à ponta do seu lápis os nossos olhos e os deixam como que parados, na expectativa com que se espera ver o passarinho mágico da manga do prestidigitador»
Um dia desse ano de 1960, este mago, prestidigitador de formas, de cores e de emoções, fez uma exposição em Vigo. Oliveira Guerra foi lá vê-la e ficou encantado, escrevendo de seguida: «A Galiza está ali pintada, por um galego cem por cento galego, cem por cento enamorado da sua linda terra, cem por cento artista, vista através da sua sensibilidade receptiva acima de tudo lírica – e se Collado, não canta como poeta a sua Galiza, as suas casas típicas, os seus barcos mergulhados nas calmas toalhas de água das rias, as suas gentes simples, calmas e cândidas, de olhar parado e distante, Collado pinta-as com todo o lirismo da sua alma ferrolana, com toda a poesia de que é capaz uma alma de galego artista e amoroso da sua terra…».
De regresso ao Porto, Oliveira Guerra trouxe o pintor consigo. Percorreram o Porto, Collado ia desenhando e espalhando obra por casa deste e daquele. Por fim, já na estação do caminho-de-ferro, o pintor abriu os braços amigos a Guerra, «falador e comovido com pena de ir e com o desejo de voltar» ficando acertado que voltaria «em breve para mostrar no Porto as águas das suas rias, as suas casas galegas, as gentes da sua terra…»
Mas Collado não voltou, então, ao Porto. Foi para Madrid, como disso se dá nota no n.º 4 da Revista Céltica, ao comentar-se a obra “O mar e o campo” que hoje se pode ver no CENTRO GALEGO DE MADRID, que aí se classifica de «peça de alegoria forte, humana, social e telúrica […]produto da sua alma ferrolana, quente e entusiasta, de pintor do Campo e do Mar, de pintor do Noroeste moreno e castiço».
E Oliveira Guerra conclui no seu texto: «Collado que veio comigo ao Porto em Abril do ano findo há-de cá voltar com os seus quadros, com a sua arte vigorosa e calma e sã que traduz a Galiza com os seus campos verdes, os seus montes meditativos, o seu mar salino e sussurrante e as suas gentes delicadas, trabalhadoras e honradas».

Demorou 40 anos, mas cumpriu-se o vaticínio. E uma vez que Oliveira Guerra por cá já não anda, somos nós que dizemos: «Bem-vindo, Collado!»

sábado, 3 de fevereiro de 2018

PRISCILIANO, UM CRISTÃO LIVRE


"Para Agostinho Costa, aguardando que siga descobrindo a Prisciliano". Foram estas as palavras que Victorino Pérez Prieto escreveu no seu livro sobre Prisciliano, antes de mo autografar.
E, na verdade, foi em boa hora que fui a Penafiel naquela noite fria de 30 de Novembro assistir à apresentação que da obra fez Alberto S- Santos, autor d' "O Segredo de Compostela".

Com efeito, o autor do livro, escritor, teólogo, filósofo e professor, formado em Filosofia e Teologia, pela Unoversidade de Santiago, doutorado em Teologia pela Universidade Pontifícia de Salamanca, doutorado em Filosofia na Universidade de Santiago, faz um percurso peloo estado dos estudos sobre Prisciliano, percorrendo a mais importante bibliografia que foi sendo publicada desde o século 4º, até aos nossos dias.
Por isso, é esta uma obra de leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema e prossegue na senda da descoberta de S: Prisciliana, primeira vítima mortal da igreja Católica, Apostólica e Romana.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

A BRUXA DE GONDARÉM




A BRUXA DE GONDARÉM

Cobria-se com três xailes e duas gabardinas. Tinha um discurso desconexo, mas era firme nas suas certezas. Se contemporizava com os pobres humanos tal devia-se às necessidades elementares da sobrevivência.
Foi o caso do Dr. Balreira.
         - Sr. Balreira, - a velhota não se prendia com senhorias, nem com outros títulos - venho aqui de mando do sr. Guerra – e enquanto tal dizia a Sra. Ana Trinta cuspia-se toda, já que o seu modo de falar produzia uma salivação de tal modo abundante e falava com a boca tão fechada que os sons lhe saíam sibilados misturados com abundante saliva.
         Arrepiava vê-la falar e as palavras percebiam-se-lhe a muito custo.
         - Diga lá mulher, o que lhe fizeram – perguntava o velho causídico já enojado das partículas de saliva que se lhe iam depositando nos códigos espalhados sobre a secretária.
- Olhe, senhor, recebi isto em casa para pagar a cabeça da senhoria, mas não vou nisso.
- A cabeça da senhoria?
Fora o caso ter a senhoria cortado o arame do estendal da roupa, com o argumento de que o coradouro não podia ser usado pela caseira, por não estar incluído no contrato de arrendamento.
Cortado o arame, foi o mesmo reposto no sítio pela bruxa – a mulher era a bruxa de Gondarém, com valimentos propagandeados até aos confins da comarca, como depois se veio a saber.
Não estava a reparação ainda concluída quando aos pés da criatura cai um calhau do tamanho de um paralelepípedo do calcetamento das estradas. A intenção não podia ser outra se não a de a fazer estatelar ali mesmo, segundo a constatação iluminada da vidente.
Todavia a senhoria era uma mulherona de trinta e poucos anos e a caseira já passava dos setenta. Por isso viu-se esta obrigada a aguçar o engenho e vai de acertar com o companheiro uma emboscada à matulona.
- E então como é que fez isso – interpelava-a o Dr. Balreira a ver se lhe encurtava a crónica.
Mas a velha entendia ser importante elencar todos os pormenores.
- Esperámo-la no quinteiro, numa passagem escura que dá para o alpendre. O meu António apanhou-a por trás, segurou-lhe as mãos e eu, que já estava preparada com uma acha, abri-lhe a cabeça, para ela aprender.
- Ó mulher, você fez isso?
- Fiz e volto a fazer se ela voltar a tirar-me o arame.
- E disse isso na judiciária?
- Disse sim senhor. Que lhe abria o miolo se ela voltasse ao feito.
Não era a primeira vez que o velho advogado amaldiçoava o dia em que escolheu a carreira. Umas partilhas aqui, uns despejos acolá até que não lhe desagradava. Mas esta gente dos correccionais fazia-lhe perder a paciência.
A conformar-se com o azar foi dizendo:
- Olhe mulher traga-me o nome de duas ou três testemunhas para abonar o bom comportamento.
- Testemunhas? Para que preciso eu de testemunhas? A minha testemunha é Jesus Cristo que está no céu e que tudo viu! – respondeu a velha que parecia escandalizada.
- Ora adeus! – vociferava o causídico fora de si – faz favor de desamparar a loja que não estou para a aturar!
- Não querem ver o alma do diabo do homem que me vai desfeitear? – dizia ela sem arredar pé, olhando-o como quem olha um sandeu.
- Rua!
Os estagiários mal continham o riso, menos o mais novo que assistia à cena com cara de caso. O Dr. Balreira olhou para eles e amainou-se-lhe o azedume contagiado pelo ar de divertimento. Ao reparar no ar circunspecto do estagiário mais recente que por ali pontificava há menos de uma semana, virou-se para a criatura:
- Olhe, espere aí. Aqui o dr…- dirigindo-se ao estagiário – como é que se chama? – tornando à velha – aqui o Dr. Inácio vai tratar-lhe do assunto!
Foi a risota geral. O Dr. Inácio, acabadinho de sair da Faculdade, não distinguia um correccional de um criminal, nunca tinha ido ao Palácio da Justiça, aportara à cidade vindo de uma aldeia interior e, por tudo isso, era o menos provável defensor dos interesses da bruxa de Gondarém.
O Dr. Inácio é que não gostou da brincadeira e ali mesmo pensou em mudar de patrono.
Saiu, quase arrastando a velha, que nesta altura dos acontecimentos quedara-se atarantada, mal se apercebendo do que se estava a passar.
- Ó minha senhora, dê cá os papéis e volte amanhã à mesma hora!
- Ai agora é você que vai tratar do assunto? Mandaram-me para o Sr. Guerra, depois para o sr. Balreira, agora para o sr. Inácio … nem Cristo de Anás para Caifás!
O papel continha uma notificação para que se pagasse a despesa do Hospital de Santo António relativa à assistência prestada à senhoria da Ana Trinta. Vinha da Comissão Arbitral de Assistência.
Comissão Arbitral? O Dr. Inácio tinha frescas na memória quase todas as matérias que lhe ensinaram em Coimbra. Mas em nenhuma delas se falava em comissão arbitral de assistência.
Socorreu-se da lista telefónica. E lá vinha a indicação da rua da Constituição, número tal, rés-do-chão. Tomou o autocarro com a notificação na mão e acercou-se da secretaria.
- O senhor desculpe, mas a minha avó recebeu esta notificação…
- Deixe lá ver. Isto é para pagar uns curativos no hospital.
- Mas quem teve a culpa foi a outra que se meteu com a minha avó.
- Ai foi? E não há processo a correr?
- Há sim senhor; em Matosinhos.
- Então é fazer um requerimento que a gente manda para lá o expediente. Ó Tozé dá aqui uma norma a este rapaz…
Nem o Dr. Balreira perguntou nada, nem o estagiário se descoseu.
Mas quando chegou a D. Ana Trinta, foi um Dr. Inácio seguro de si que lhe disse:
- Pronto, minha senhora, quanto ao Hospital estamos arrumados. Quando vier a marcação do julgamento apareça por cá. E se puder arranjar duas ou três testemunhas só para dizer que a senhora é boa pessoa, traga-me os nomes, estado e residência.
- Ó menino, já disse que eu não preciso de testemunhas. Nosso Senhor que do Céu vê tudo bem sabe que eu tenho razão.
- Pronto, pronto, não se aborreça, a senhora é que sabe. Boa tarde e até à próxima.
O Patrono estava admirado com a desenvoltura do estagiário.
- Então, Dr. Inácio, como é que deu a volta ao assunto?
O Candidato à Advocacia explicou-lhe tim-tim por tim-tim os termos do requerimento, as leis invocadas e o resultado esperado como se nada daquilo tivesse novidade para si. O Dr. Balreira passou a dar-lhe mais atenção e chegava a inquiri-lo sobre algumas das novidades do Código de 1966, já que no que estava calhado era o Código de Seabra muito mais rigoroso ao jeito da Escola de Viena.
Veio a notificação da marcação do julgamento e com ela a Ana Trinta embrulhada nos seus xailes, agora com um lenço preto amarrado à volta da cabeça.
- Parece impossível, mas vamos ser mesmo julgados.
O Dr. Inácio explicou-lhe que só podia faltar ao julgamento duas vezes, já que à terceira o julgamento far-se-ia mesmo sem a presença dela.
- E se faltar duas vezes eu e duas vezes o meu homem?
- O julgamento é adiado quatro vezes.
- E vai faltar?
- Claro. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.
- A senhora é quem sabe.
- E não esteja à espera de testemunhas, que não vou incomodar ninguém.
. Ó minha senhora, quanto a isso já estamos acertados.
- Quer-me parecer que é mais fino que o Sr. Balreira.
- O Sr. Dr. Balreira acha que é preciso testemunhas e também eu acho, mas a senhora é teimosa…
Nem deixou acabar a conversa, dando meia volta e desaparecendo na penumbra das escadas.
No dia designado para a audiência de julgamento lá compareceu a Ana Trinta sem mudar um detalhe à indumentária do costume, acompanhada do Dr. Inácio, arrumando-se ambos a um canto do átrio do tribunal.
Feita a chamada, responderam a queixosa, o seu advogado e dezasseis testemunhas de acusação. Por falta do arguido foi a audiência adiada para daí a seis meses.
Mais ou menos da mesma maneira ocorreram as coisas no dia da segunda marcação do julgamento. Na terceira, faltou a Ana Trinta e compareceu o marido. E uma outra vez, em quarta data designada para o mesmo efeito, também a audiência ficou adiada por falta da arguida, apesar de estarem presentes todas as outras pessoas convocadas para o efeito, incluindo as 16 testemunhas arroladas pela queixosa.
Até que chegou a data da quinta marcação verificando o oficial de diligências a presença de ambos os arguidos e respectivo defensor, a queixosa e respectivo advogado, bem como todas as testemunhas, que eram só as da acusação, já que pela defesa não tinha sido apresentado rol.
Sentia-se no rosto da ofendida um certo ar vitorioso, de quem acha finalmente chegada a hora do juízo final. O próprio advogado tinha dirigido um remoque ao jovem Inácio, comentando que para tudo havia uma hora e que o tempo das manobras dilatórias tinha acabado.
Os arguidos sentavam-se ambos no banco dos réus, ele absorto, quase indiferente ao que se ia passar, e ela com o ar fixo no Juiz, com cara de quem espera a oportunidade de explicar as razões da inocência.
O Juiz, rapaz novo e esperançoso na salvação do mundo, aparentava o ar solene de um dominicano, quiçá a magicar no correctivo que havia de ministrar aquela gente que parecia andar a brincar com a Justiça.
         - Levantem-se lá. Primeiro a senhora. Às perguntas que vou fazer é obrigada a responder com verdade…
         Vendo chegada a hora a Ana Trinta retirou um denegrido paralelepípedo da sacola e empunhando-o na direcção do Juiz, vociferou:
         - Olhe, menino, toda esta merda começou com isto!
         Depois de uns segundos de estupefacção geral, o Juiz, virando-se para o Dr. Inácio, questionou:
         - Mas que é isto, Sr. Dr.?
         - Sr. Dr. Juiz, eu já suspeitava da sanidade mental da minha constituinte. Pretendo requerer exame às faculdades mentais da arguida.
         O advogado da queixosa não atentou no que disse:
         - Ó Sr. Dr., por amor de Deus. Aqui na comarca esses exames demoram para cima de dois anos!
         - Ó Sr. Dr. Juiz – gritava a queixosa do fundo da sala ao tomar sentido do que estava a acontecer – eu desisto, eu perdoo, eu pago o que tiver de pagar, mas quero acabar com o processo. É a quinta vez que venho ao tribunal. Tenho de pagar o dia e o almoço a 16 pessoas fora o transporte. Já não posso…
         O Juiz nem acreditava no que estava a ouvir. Uma desistência numa embrulhada daquelas, com uma arguida sem juízo, vinha mesmo a calhar.
         - Levante-se lá a senhora – dizia ele para a ofendida deitando os olhos ao advogado. – Se quer desistir tem todo o direito a fazê-lo! Não quer falar com o seu advogado?
         Só então o advogado caiu em si, saindo do espanto em que caíra com o evoluir dos acontecimentos.
         - Não há que falar. Se posso desistir eu desisto. Está desistido.
         - A senhora é quem sabe. Levantem-se os arguidos. Aceitam a desistência?
         - Aceitam sim – adiantou-se o defensor, já que dos arguidos o marido continuava com o seu ar absorto e indiferente e a esposa não tirava os olhos do Juiz a medir os acontecimentos.
         - Podem então ir em paz. Está encerrada a audiência.
         A velha recolheu o pedregulho na sacola, aconchegou-se com o xaile e virou-se para o Dr. Inácio:
         - Eu não lhe dizia que não eram precisas testemunhas?


Agostinho Costa