A BRUXA DE GONDARÉM
Cobria-se
com três xailes e duas gabardinas. Tinha um discurso desconexo, mas era firme
nas suas certezas. Se contemporizava com os pobres humanos tal devia-se às
necessidades elementares da sobrevivência.
Foi o
caso do Dr. Balreira.
- Sr. Balreira, - a velhota não se
prendia com senhorias, nem com outros títulos - venho aqui de mando do sr.
Guerra – e enquanto tal dizia a Sra. Ana Trinta cuspia-se toda, já que o seu
modo de falar produzia uma salivação de tal modo abundante e falava com a boca
tão fechada que os sons lhe saíam sibilados misturados com abundante saliva.
Arrepiava vê-la falar e as palavras
percebiam-se-lhe a muito custo.
- Diga lá mulher, o que lhe fizeram –
perguntava o velho causídico já enojado das partículas de saliva que se lhe iam
depositando nos códigos espalhados sobre a secretária.
- Olhe,
senhor, recebi isto em casa para pagar a cabeça da senhoria, mas não vou nisso.
- A
cabeça da senhoria?
Fora o
caso ter a senhoria cortado o arame do estendal da roupa, com o argumento de
que o coradouro não podia ser usado
pela caseira, por não estar incluído no contrato de arrendamento.
Cortado
o arame, foi o mesmo reposto no sítio pela bruxa – a mulher era a bruxa de
Gondarém, com valimentos propagandeados até aos confins da comarca, como depois
se veio a saber.
Não
estava a reparação ainda concluída quando aos pés da criatura cai um calhau do
tamanho de um paralelepípedo do calcetamento das estradas. A intenção não podia
ser outra se não a de a fazer estatelar ali mesmo, segundo a constatação
iluminada da vidente.
Todavia
a senhoria era uma mulherona de
trinta e poucos anos e a caseira já passava dos setenta. Por isso viu-se esta
obrigada a aguçar o engenho e vai de acertar com o companheiro uma emboscada à
matulona.
- E então
como é que fez isso – interpelava-a o Dr. Balreira a ver se lhe encurtava a
crónica.
Mas a
velha entendia ser importante elencar todos os pormenores.
-
Esperámo-la no quinteiro, numa passagem escura que dá para o alpendre. O meu
António apanhou-a por trás, segurou-lhe as mãos e eu, que já estava preparada
com uma acha, abri-lhe a cabeça, para ela aprender.
- Ó
mulher, você fez isso?
- Fiz e
volto a fazer se ela voltar a tirar-me o arame.
- E
disse isso na judiciária?
- Disse
sim senhor. Que lhe abria o miolo se ela voltasse ao feito.
Não era
a primeira vez que o velho advogado amaldiçoava o dia em que escolheu a
carreira. Umas partilhas aqui, uns despejos acolá até que não lhe desagradava.
Mas esta gente dos correccionais fazia-lhe perder a paciência.
A conformar-se
com o azar foi dizendo:
- Olhe
mulher traga-me o nome de duas ou três testemunhas para abonar o bom
comportamento.
-
Testemunhas? Para que preciso eu de testemunhas? A minha testemunha é Jesus
Cristo que está no céu e que tudo viu! – respondeu a velha que parecia
escandalizada.
- Ora
adeus! – vociferava o causídico fora de si – faz favor de desamparar a loja que
não estou para a aturar!
- Não
querem ver o alma do diabo do homem que me vai desfeitear? – dizia ela sem
arredar pé, olhando-o como quem olha um sandeu.
- Rua!
Os
estagiários mal continham o riso, menos o mais novo que assistia à cena com
cara de caso. O Dr. Balreira olhou para eles e amainou-se-lhe o azedume
contagiado pelo ar de divertimento. Ao reparar no ar circunspecto do estagiário
mais recente que por ali pontificava há menos de uma semana, virou-se para a
criatura:
- Olhe,
espere aí. Aqui o dr…- dirigindo-se ao estagiário – como é que se chama? –
tornando à velha – aqui o Dr. Inácio vai tratar-lhe do assunto!
Foi a
risota geral. O Dr. Inácio, acabadinho de sair da Faculdade, não distinguia um
correccional de um criminal, nunca tinha ido ao Palácio da Justiça, aportara à
cidade vindo de uma aldeia interior e, por tudo isso, era o menos provável defensor
dos interesses da bruxa de Gondarém.
O Dr.
Inácio é que não gostou da brincadeira e ali mesmo pensou em mudar de patrono.
Saiu,
quase arrastando a velha, que nesta altura dos acontecimentos quedara-se
atarantada, mal se apercebendo do que se estava a passar.
- Ó
minha senhora, dê cá os papéis e volte amanhã à mesma hora!
- Ai
agora é você que vai tratar do assunto? Mandaram-me para o Sr. Guerra, depois
para o sr. Balreira, agora para o sr. Inácio … nem Cristo de Anás para Caifás!
O papel
continha uma notificação para que se pagasse a despesa do Hospital de Santo
António relativa à assistência prestada à senhoria da Ana Trinta. Vinha da
Comissão Arbitral de Assistência.
Comissão
Arbitral? O Dr. Inácio tinha frescas na memória quase todas as matérias que lhe
ensinaram em Coimbra. Mas
em nenhuma delas se falava em comissão arbitral de assistência.
Socorreu-se
da lista telefónica. E lá vinha a indicação da rua da Constituição, número tal,
rés-do-chão. Tomou o autocarro com a notificação na mão e acercou-se da
secretaria.
- O
senhor desculpe, mas a minha avó recebeu esta notificação…
- Deixe
lá ver. Isto é para pagar uns curativos no hospital.
- Mas
quem teve a culpa foi a outra que se meteu com a minha avó.
- Ai
foi? E não há processo a correr?
- Há sim
senhor; em Matosinhos.
- Então
é fazer um requerimento que a gente manda para lá o expediente. Ó Tozé dá aqui
uma norma a este rapaz…
Nem o
Dr. Balreira perguntou nada, nem o estagiário se descoseu.
Mas
quando chegou a D. Ana Trinta, foi um Dr. Inácio seguro de si que lhe disse:
-
Pronto, minha senhora, quanto ao Hospital estamos arrumados. Quando vier a
marcação do julgamento apareça por cá. E se puder arranjar duas ou três
testemunhas só para dizer que a senhora é boa pessoa, traga-me os nomes, estado
e residência.
- Ó
menino, já disse que eu não preciso de testemunhas. Nosso Senhor que do Céu vê
tudo bem sabe que eu tenho razão.
-
Pronto, pronto, não se aborreça, a senhora é que sabe. Boa tarde e até à
próxima.
O
Patrono estava admirado com a desenvoltura do estagiário.
- Então,
Dr. Inácio, como é que deu a volta ao assunto?
O
Candidato à Advocacia explicou-lhe tim-tim por tim-tim os termos do
requerimento, as leis invocadas e o resultado esperado como se nada daquilo
tivesse novidade para si. O Dr. Balreira passou a dar-lhe mais atenção e
chegava a inquiri-lo sobre algumas das novidades do Código de 1966, já que no
que estava calhado era o Código de Seabra muito mais rigoroso ao jeito da
Escola de Viena.
Veio a
notificação da marcação do julgamento e com ela a Ana Trinta embrulhada nos
seus xailes, agora com um lenço preto amarrado à volta da cabeça.
- Parece
impossível, mas vamos ser mesmo julgados.
O Dr.
Inácio explicou-lhe que só podia faltar ao julgamento duas vezes, já que à
terceira o julgamento far-se-ia mesmo sem a presença dela.
- E se
faltar duas vezes eu e duas vezes o meu homem?
- O
julgamento é adiado quatro vezes.
- E vai
faltar?
- Claro.
Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.
- A
senhora é quem sabe.
- E não
esteja à espera de testemunhas, que não vou incomodar ninguém.
. Ó
minha senhora, quanto a isso já estamos acertados.
-
Quer-me parecer que é mais fino que o Sr. Balreira.
- O Sr.
Dr. Balreira acha que é preciso testemunhas e também eu acho, mas a senhora é
teimosa…
Nem
deixou acabar a conversa, dando meia volta e desaparecendo na penumbra das
escadas.
No dia
designado para a audiência de julgamento lá compareceu a Ana Trinta sem mudar
um detalhe à indumentária do costume, acompanhada do Dr. Inácio, arrumando-se
ambos a um canto do átrio do tribunal.
Feita a
chamada, responderam a queixosa, o seu advogado e dezasseis testemunhas de
acusação. Por falta do arguido foi a audiência adiada para daí a seis meses.
Mais ou
menos da mesma maneira ocorreram as coisas no dia da segunda marcação do
julgamento. Na terceira, faltou a Ana Trinta e compareceu o marido. E uma outra
vez, em quarta data designada para o mesmo efeito, também a audiência ficou
adiada por falta da arguida, apesar de estarem presentes todas as outras
pessoas convocadas para o efeito, incluindo as 16 testemunhas arroladas pela
queixosa.
Até que
chegou a data da quinta marcação verificando o oficial de diligências a presença
de ambos os arguidos e respectivo defensor, a queixosa e respectivo advogado,
bem como todas as testemunhas, que eram só as da acusação, já que pela defesa
não tinha sido apresentado rol.
Sentia-se
no rosto da ofendida um certo ar vitorioso, de quem acha finalmente chegada a
hora do juízo final. O próprio advogado tinha dirigido um remoque ao jovem
Inácio, comentando que para tudo havia uma hora e que o tempo das manobras
dilatórias tinha acabado.
Os
arguidos sentavam-se ambos no banco dos réus, ele absorto, quase indiferente ao
que se ia passar, e ela com o ar fixo no Juiz, com cara de quem espera a
oportunidade de explicar as razões da inocência.
O Juiz,
rapaz novo e esperançoso na salvação do mundo, aparentava o ar solene de um
dominicano, quiçá a magicar no correctivo que havia de ministrar aquela gente
que parecia andar a brincar com a Justiça.
- Levantem-se lá. Primeiro a senhora.
Às perguntas que vou fazer é obrigada a responder com verdade…
Vendo chegada a hora a Ana Trinta
retirou um denegrido paralelepípedo da sacola e empunhando-o na direcção do
Juiz, vociferou:
- Olhe, menino, toda esta merda começou
com isto!
Depois de uns segundos de estupefacção
geral, o Juiz, virando-se para o Dr. Inácio, questionou:
- Mas que é isto, Sr. Dr.?
- Sr. Dr. Juiz, eu já suspeitava da
sanidade mental da minha constituinte. Pretendo requerer exame às faculdades
mentais da arguida.
O advogado da queixosa não atentou no
que disse:
- Ó Sr. Dr., por amor de Deus. Aqui na
comarca esses exames demoram para cima de dois anos!
- Ó Sr. Dr. Juiz – gritava a queixosa
do fundo da sala ao tomar sentido do que estava a acontecer – eu desisto, eu
perdoo, eu pago o que tiver de pagar, mas quero acabar com o processo. É a
quinta vez que venho ao tribunal. Tenho de pagar o dia e o almoço a 16 pessoas
fora o transporte. Já não posso…
O Juiz nem acreditava no que estava a
ouvir. Uma desistência numa embrulhada daquelas, com uma arguida sem juízo,
vinha mesmo a calhar.
- Levante-se lá a senhora – dizia ele
para a ofendida deitando os olhos ao advogado. – Se quer desistir tem todo o
direito a fazê-lo! Não quer falar com o seu advogado?
Só então o advogado caiu em si, saindo
do espanto em que caíra com o evoluir dos acontecimentos.
- Não há que falar. Se posso desistir
eu desisto. Está desistido.
- A senhora é quem sabe. Levantem-se os
arguidos. Aceitam a desistência?
- Aceitam sim – adiantou-se o defensor,
já que dos arguidos o marido continuava com o seu ar absorto e indiferente e a
esposa não tirava os olhos do Juiz a medir os acontecimentos.
- Podem então ir em paz. Está encerrada a
audiência.
A velha recolheu o pedregulho na sacola,
aconchegou-se com o xaile e virou-se para o Dr. Inácio:
- Eu não lhe dizia que não eram
precisas testemunhas?
Agostinho Costa