terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

DE QUANDO JOSÉ GONZALEZ COLLADO FOI EXPOR NO PAÇO DOS DUQUES DE BRAGANÇA



José González Collado, pintor do Norte, natural de Ferrol, deambulou por Madrid, Norte de África, Paris, até voltar novamente ao Ferrol onde reside e continua a produzir Arte, apesar dos seus 83 anos idade.
Da sua terra absorve as brumas, as neblinas, os azuis e cinzas do mar, o enevoado dos dias chuvosos, as mulheres sensuais e misteriosas enraizadas nas lendas milenares dos Celtas, suas memórias e ancestrais costumes. E a saudade nascida das perdas no mar.
Nos seus quadros é notória a influência cubista, o rigor do traço delineado com o saber dos mestres e a exímia mestria na conjugação das cores.
Destes parâmetros só podiam emergir obras sérias, nascidas para ficarem para a posteridade, como estas que decoram os muros deste vetusto Paço.
A sua terra ditou-lhe também os temas: cenas do quotidiano galego, paisagens inspiradas na sua terra mátria, as feiras, os ofícios, os gaiteiros e outros músicos ligados a um povo alegre e divertido, os Cristos agonizantes na cruz das procissões sentidas da Semana Santa.
Do seu gosto pela intemporalidade do eterno feminino surgem as madonas, as maternidades, os corpos nus, sensuais e belos.
E sobretudo o testemunho sentido por quem gosta de arte, que coloca na tela a sua alegria de viver, a sua experiência da vida, a sua memória dos tempos idos, a sua alma.
Pelos primórdios dos anos 60, Manuel Oliveira Guerra lançou-se na aventura da Revista Céltica, a congregar os espíritos de ambas as pátrias da velha mátria Galega, a Galécia romana, a suévia visigótica, a Galiza de Afonso VI.
González Collado foi dos que acudiram à chamada de Oliveira Guerra, colaborando com o movimento em marcha, visitando Portugal nessa altura, convivendo com artistas portugueses, entre eles o saudoso escultor Barata Feyo, o esclarecido autor da estátua da mais galega de todas as poetisas da Galiza, Rosalia de Castro.
Por esse tempo, em 1960, Manuel Oliveira Guerra, na sua revista Céltica, dizia deste pintor que agora nos visita: «Collado, com efeito, é um desenhador magnífico, fácil, rapidíssimo, sóbrio e gracioso, dotado duma maestria e de um sortilégio que prendem à ponta do seu lápis os nossos olhos e os deixam como que parados, na expectativa com que se espera ver o passarinho mágico da manga do prestidigitador»
Um dia desse ano de 1960, este mago, prestidigitador de formas, de cores e de emoções, fez uma exposição em Vigo. Oliveira Guerra foi lá vê-la e ficou encantado, escrevendo de seguida: «A Galiza está ali pintada, por um galego cem por cento galego, cem por cento enamorado da sua linda terra, cem por cento artista, vista através da sua sensibilidade receptiva acima de tudo lírica – e se Collado, não canta como poeta a sua Galiza, as suas casas típicas, os seus barcos mergulhados nas calmas toalhas de água das rias, as suas gentes simples, calmas e cândidas, de olhar parado e distante, Collado pinta-as com todo o lirismo da sua alma ferrolana, com toda a poesia de que é capaz uma alma de galego artista e amoroso da sua terra…».
De regresso ao Porto, Oliveira Guerra trouxe o pintor consigo. Percorreram o Porto, Collado ia desenhando e espalhando obra por casa deste e daquele. Por fim, já na estação do caminho-de-ferro, o pintor abriu os braços amigos a Guerra, «falador e comovido com pena de ir e com o desejo de voltar» ficando acertado que voltaria «em breve para mostrar no Porto as águas das suas rias, as suas casas galegas, as gentes da sua terra…»
Mas Collado não voltou, então, ao Porto. Foi para Madrid, como disso se dá nota no n.º 4 da Revista Céltica, ao comentar-se a obra “O mar e o campo” que hoje se pode ver no CENTRO GALEGO DE MADRID, que aí se classifica de «peça de alegoria forte, humana, social e telúrica […]produto da sua alma ferrolana, quente e entusiasta, de pintor do Campo e do Mar, de pintor do Noroeste moreno e castiço».
E Oliveira Guerra conclui no seu texto: «Collado que veio comigo ao Porto em Abril do ano findo há-de cá voltar com os seus quadros, com a sua arte vigorosa e calma e sã que traduz a Galiza com os seus campos verdes, os seus montes meditativos, o seu mar salino e sussurrante e as suas gentes delicadas, trabalhadoras e honradas».

Demorou 40 anos, mas cumpriu-se o vaticínio. E uma vez que Oliveira Guerra por cá já não anda, somos nós que dizemos: «Bem-vindo, Collado!»

sábado, 3 de fevereiro de 2018

PRISCILIANO, UM CRISTÃO LIVRE


"Para Agostinho Costa, aguardando que siga descobrindo a Prisciliano". Foram estas as palavras que Victorino Pérez Prieto escreveu no seu livro sobre Prisciliano, antes de mo autografar.
E, na verdade, foi em boa hora que fui a Penafiel naquela noite fria de 30 de Novembro assistir à apresentação que da obra fez Alberto S- Santos, autor d' "O Segredo de Compostela".

Com efeito, o autor do livro, escritor, teólogo, filósofo e professor, formado em Filosofia e Teologia, pela Unoversidade de Santiago, doutorado em Teologia pela Universidade Pontifícia de Salamanca, doutorado em Filosofia na Universidade de Santiago, faz um percurso peloo estado dos estudos sobre Prisciliano, percorrendo a mais importante bibliografia que foi sendo publicada desde o século 4º, até aos nossos dias.
Por isso, é esta uma obra de leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema e prossegue na senda da descoberta de S: Prisciliana, primeira vítima mortal da igreja Católica, Apostólica e Romana.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

A BRUXA DE GONDARÉM




A BRUXA DE GONDARÉM

Cobria-se com três xailes e duas gabardinas. Tinha um discurso desconexo, mas era firme nas suas certezas. Se contemporizava com os pobres humanos tal devia-se às necessidades elementares da sobrevivência.
Foi o caso do Dr. Balreira.
         - Sr. Balreira, - a velhota não se prendia com senhorias, nem com outros títulos - venho aqui de mando do sr. Guerra – e enquanto tal dizia a Sra. Ana Trinta cuspia-se toda, já que o seu modo de falar produzia uma salivação de tal modo abundante e falava com a boca tão fechada que os sons lhe saíam sibilados misturados com abundante saliva.
         Arrepiava vê-la falar e as palavras percebiam-se-lhe a muito custo.
         - Diga lá mulher, o que lhe fizeram – perguntava o velho causídico já enojado das partículas de saliva que se lhe iam depositando nos códigos espalhados sobre a secretária.
- Olhe, senhor, recebi isto em casa para pagar a cabeça da senhoria, mas não vou nisso.
- A cabeça da senhoria?
Fora o caso ter a senhoria cortado o arame do estendal da roupa, com o argumento de que o coradouro não podia ser usado pela caseira, por não estar incluído no contrato de arrendamento.
Cortado o arame, foi o mesmo reposto no sítio pela bruxa – a mulher era a bruxa de Gondarém, com valimentos propagandeados até aos confins da comarca, como depois se veio a saber.
Não estava a reparação ainda concluída quando aos pés da criatura cai um calhau do tamanho de um paralelepípedo do calcetamento das estradas. A intenção não podia ser outra se não a de a fazer estatelar ali mesmo, segundo a constatação iluminada da vidente.
Todavia a senhoria era uma mulherona de trinta e poucos anos e a caseira já passava dos setenta. Por isso viu-se esta obrigada a aguçar o engenho e vai de acertar com o companheiro uma emboscada à matulona.
- E então como é que fez isso – interpelava-a o Dr. Balreira a ver se lhe encurtava a crónica.
Mas a velha entendia ser importante elencar todos os pormenores.
- Esperámo-la no quinteiro, numa passagem escura que dá para o alpendre. O meu António apanhou-a por trás, segurou-lhe as mãos e eu, que já estava preparada com uma acha, abri-lhe a cabeça, para ela aprender.
- Ó mulher, você fez isso?
- Fiz e volto a fazer se ela voltar a tirar-me o arame.
- E disse isso na judiciária?
- Disse sim senhor. Que lhe abria o miolo se ela voltasse ao feito.
Não era a primeira vez que o velho advogado amaldiçoava o dia em que escolheu a carreira. Umas partilhas aqui, uns despejos acolá até que não lhe desagradava. Mas esta gente dos correccionais fazia-lhe perder a paciência.
A conformar-se com o azar foi dizendo:
- Olhe mulher traga-me o nome de duas ou três testemunhas para abonar o bom comportamento.
- Testemunhas? Para que preciso eu de testemunhas? A minha testemunha é Jesus Cristo que está no céu e que tudo viu! – respondeu a velha que parecia escandalizada.
- Ora adeus! – vociferava o causídico fora de si – faz favor de desamparar a loja que não estou para a aturar!
- Não querem ver o alma do diabo do homem que me vai desfeitear? – dizia ela sem arredar pé, olhando-o como quem olha um sandeu.
- Rua!
Os estagiários mal continham o riso, menos o mais novo que assistia à cena com cara de caso. O Dr. Balreira olhou para eles e amainou-se-lhe o azedume contagiado pelo ar de divertimento. Ao reparar no ar circunspecto do estagiário mais recente que por ali pontificava há menos de uma semana, virou-se para a criatura:
- Olhe, espere aí. Aqui o dr…- dirigindo-se ao estagiário – como é que se chama? – tornando à velha – aqui o Dr. Inácio vai tratar-lhe do assunto!
Foi a risota geral. O Dr. Inácio, acabadinho de sair da Faculdade, não distinguia um correccional de um criminal, nunca tinha ido ao Palácio da Justiça, aportara à cidade vindo de uma aldeia interior e, por tudo isso, era o menos provável defensor dos interesses da bruxa de Gondarém.
O Dr. Inácio é que não gostou da brincadeira e ali mesmo pensou em mudar de patrono.
Saiu, quase arrastando a velha, que nesta altura dos acontecimentos quedara-se atarantada, mal se apercebendo do que se estava a passar.
- Ó minha senhora, dê cá os papéis e volte amanhã à mesma hora!
- Ai agora é você que vai tratar do assunto? Mandaram-me para o Sr. Guerra, depois para o sr. Balreira, agora para o sr. Inácio … nem Cristo de Anás para Caifás!
O papel continha uma notificação para que se pagasse a despesa do Hospital de Santo António relativa à assistência prestada à senhoria da Ana Trinta. Vinha da Comissão Arbitral de Assistência.
Comissão Arbitral? O Dr. Inácio tinha frescas na memória quase todas as matérias que lhe ensinaram em Coimbra. Mas em nenhuma delas se falava em comissão arbitral de assistência.
Socorreu-se da lista telefónica. E lá vinha a indicação da rua da Constituição, número tal, rés-do-chão. Tomou o autocarro com a notificação na mão e acercou-se da secretaria.
- O senhor desculpe, mas a minha avó recebeu esta notificação…
- Deixe lá ver. Isto é para pagar uns curativos no hospital.
- Mas quem teve a culpa foi a outra que se meteu com a minha avó.
- Ai foi? E não há processo a correr?
- Há sim senhor; em Matosinhos.
- Então é fazer um requerimento que a gente manda para lá o expediente. Ó Tozé dá aqui uma norma a este rapaz…
Nem o Dr. Balreira perguntou nada, nem o estagiário se descoseu.
Mas quando chegou a D. Ana Trinta, foi um Dr. Inácio seguro de si que lhe disse:
- Pronto, minha senhora, quanto ao Hospital estamos arrumados. Quando vier a marcação do julgamento apareça por cá. E se puder arranjar duas ou três testemunhas só para dizer que a senhora é boa pessoa, traga-me os nomes, estado e residência.
- Ó menino, já disse que eu não preciso de testemunhas. Nosso Senhor que do Céu vê tudo bem sabe que eu tenho razão.
- Pronto, pronto, não se aborreça, a senhora é que sabe. Boa tarde e até à próxima.
O Patrono estava admirado com a desenvoltura do estagiário.
- Então, Dr. Inácio, como é que deu a volta ao assunto?
O Candidato à Advocacia explicou-lhe tim-tim por tim-tim os termos do requerimento, as leis invocadas e o resultado esperado como se nada daquilo tivesse novidade para si. O Dr. Balreira passou a dar-lhe mais atenção e chegava a inquiri-lo sobre algumas das novidades do Código de 1966, já que no que estava calhado era o Código de Seabra muito mais rigoroso ao jeito da Escola de Viena.
Veio a notificação da marcação do julgamento e com ela a Ana Trinta embrulhada nos seus xailes, agora com um lenço preto amarrado à volta da cabeça.
- Parece impossível, mas vamos ser mesmo julgados.
O Dr. Inácio explicou-lhe que só podia faltar ao julgamento duas vezes, já que à terceira o julgamento far-se-ia mesmo sem a presença dela.
- E se faltar duas vezes eu e duas vezes o meu homem?
- O julgamento é adiado quatro vezes.
- E vai faltar?
- Claro. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.
- A senhora é quem sabe.
- E não esteja à espera de testemunhas, que não vou incomodar ninguém.
. Ó minha senhora, quanto a isso já estamos acertados.
- Quer-me parecer que é mais fino que o Sr. Balreira.
- O Sr. Dr. Balreira acha que é preciso testemunhas e também eu acho, mas a senhora é teimosa…
Nem deixou acabar a conversa, dando meia volta e desaparecendo na penumbra das escadas.
No dia designado para a audiência de julgamento lá compareceu a Ana Trinta sem mudar um detalhe à indumentária do costume, acompanhada do Dr. Inácio, arrumando-se ambos a um canto do átrio do tribunal.
Feita a chamada, responderam a queixosa, o seu advogado e dezasseis testemunhas de acusação. Por falta do arguido foi a audiência adiada para daí a seis meses.
Mais ou menos da mesma maneira ocorreram as coisas no dia da segunda marcação do julgamento. Na terceira, faltou a Ana Trinta e compareceu o marido. E uma outra vez, em quarta data designada para o mesmo efeito, também a audiência ficou adiada por falta da arguida, apesar de estarem presentes todas as outras pessoas convocadas para o efeito, incluindo as 16 testemunhas arroladas pela queixosa.
Até que chegou a data da quinta marcação verificando o oficial de diligências a presença de ambos os arguidos e respectivo defensor, a queixosa e respectivo advogado, bem como todas as testemunhas, que eram só as da acusação, já que pela defesa não tinha sido apresentado rol.
Sentia-se no rosto da ofendida um certo ar vitorioso, de quem acha finalmente chegada a hora do juízo final. O próprio advogado tinha dirigido um remoque ao jovem Inácio, comentando que para tudo havia uma hora e que o tempo das manobras dilatórias tinha acabado.
Os arguidos sentavam-se ambos no banco dos réus, ele absorto, quase indiferente ao que se ia passar, e ela com o ar fixo no Juiz, com cara de quem espera a oportunidade de explicar as razões da inocência.
O Juiz, rapaz novo e esperançoso na salvação do mundo, aparentava o ar solene de um dominicano, quiçá a magicar no correctivo que havia de ministrar aquela gente que parecia andar a brincar com a Justiça.
         - Levantem-se lá. Primeiro a senhora. Às perguntas que vou fazer é obrigada a responder com verdade…
         Vendo chegada a hora a Ana Trinta retirou um denegrido paralelepípedo da sacola e empunhando-o na direcção do Juiz, vociferou:
         - Olhe, menino, toda esta merda começou com isto!
         Depois de uns segundos de estupefacção geral, o Juiz, virando-se para o Dr. Inácio, questionou:
         - Mas que é isto, Sr. Dr.?
         - Sr. Dr. Juiz, eu já suspeitava da sanidade mental da minha constituinte. Pretendo requerer exame às faculdades mentais da arguida.
         O advogado da queixosa não atentou no que disse:
         - Ó Sr. Dr., por amor de Deus. Aqui na comarca esses exames demoram para cima de dois anos!
         - Ó Sr. Dr. Juiz – gritava a queixosa do fundo da sala ao tomar sentido do que estava a acontecer – eu desisto, eu perdoo, eu pago o que tiver de pagar, mas quero acabar com o processo. É a quinta vez que venho ao tribunal. Tenho de pagar o dia e o almoço a 16 pessoas fora o transporte. Já não posso…
         O Juiz nem acreditava no que estava a ouvir. Uma desistência numa embrulhada daquelas, com uma arguida sem juízo, vinha mesmo a calhar.
         - Levante-se lá a senhora – dizia ele para a ofendida deitando os olhos ao advogado. – Se quer desistir tem todo o direito a fazê-lo! Não quer falar com o seu advogado?
         Só então o advogado caiu em si, saindo do espanto em que caíra com o evoluir dos acontecimentos.
         - Não há que falar. Se posso desistir eu desisto. Está desistido.
         - A senhora é quem sabe. Levantem-se os arguidos. Aceitam a desistência?
         - Aceitam sim – adiantou-se o defensor, já que dos arguidos o marido continuava com o seu ar absorto e indiferente e a esposa não tirava os olhos do Juiz a medir os acontecimentos.
         - Podem então ir em paz. Está encerrada a audiência.
         A velha recolheu o pedregulho na sacola, aconchegou-se com o xaile e virou-se para o Dr. Inácio:
         - Eu não lhe dizia que não eram precisas testemunhas?


Agostinho Costa

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A VERDADE



Propondo-me falar da VERDADE, não sei o que dizer.
Com efeito, não sei o que é a verdade, para além de um antinómico da mentira.
Será que ao nos referirmos ao conceito de Verdade pretendemos referir-nos ao princípio dos princípios, à causa das causas?
Todavia, para mim, isso é Deus e eu não conheço Deus.
Mas não o conhecendo, não posso dizer, como Alberto Caeiro, que não acredite nele, porque acredito.
Caeiro dizia:
«Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro,
Dizendo-me Aqui estou!

(Isso é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Como o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.»

E mais uma vez me afasto de Alberto Caeiro, porque para mim «as árvores e as flores e os montes e o luar e o sol» são obra de Deus e não o próprio Criador.
Por isso, não o conhecendo, eu acredito n´Ele.
Diz Voltaire, no seu Dicionário Filosófico, que «Sob o império de Arcádio, Logomaco, teologal de Constantinopla, foi à Cítia e deteve-se no sopé do Cáucaso, nas férteis planuras de Zefirim, já nas fronteiras da Cólquida. O bom velhote Dondindac estava na sua grande sala baixa, entre o aprisco e a vasta granja; ajoelhado, e com ele também ajoelhados estavam a mulher, cinco filhos e outras tantas filhas, todos entoavam louvores a Deus, após um ligeiro repasto. - "Que fazes aí, idólatra?" perguntou-lhe Logomaco. - "Não sou idólatra", respondeu Dondindac. - "Hás de sê-lo, por força, pois és um cita e não um grego. Ora, dize-me cá, que entoavas tu nesse teu bárbaro linguajar de cita?" - "Todas as línguas são iguais, aos ouvidos de Deus", respondeu o cita; "louvávamos o Senhor, em nossos hinos." - "Que coisa estapafúrdia", admirou-se o teologal. "Uma família cita que reza a Deus sem nunca ter sido ensinada por nós!" E, sem mais aquela, iniciou uma conversa com o citado Dondindac, porque o teologal - valha-nos isso! - sabia um poucochinho da língua cita e o outro - ainda bem! - sabia seu naco de grego. Esta instrutiva palestra, meio em cita meio em grego, foi achada num manuscrito que se conserva (quase por milagre) na biblioteca de Constantinopla.
Foi como se segue:
LOGOMACO - Ora, vamos lá a ver se sabes o teu catecismo. Por que rezas a Deus?
DONDINDAC - É porque é justo adorar o Ser Supremo, que nos deu tudo quanto possuímos.
LOGOMACO - Não está nada mal observado, não senhor, para um bárbaro como tu! E que lhe pedes nas tuas orações?
DONDINDAC  - Agradeço-lhe todos os bens de que desfruto e também os males de que sofro; mas não lhe peço nada: Ele sabe melhor do que nós aquilo de que carecemos, e não é só por isso: temia pedir-lhe bom tempo enquanto o meu vizinho era muito capaz de lhe estar a pedir chuva.
LOGOMACO - Ah! Já estava mesmo à espera de que me dissesses qualquer tolice. Vamos recomeçar, mas com mais elevação. Ora dize-me lá, bárbaro duma figa, quem te disse que Deus existe, sim, que há um Deus?
DONDINDAC - A Natureza inteira.
LOGOMACO - Não basta. Que ideia fazes tu de Deus?
DONDINDAC - A ideia de que é o meu criador, o meu senhor, que me há-de recompensar se eu praticar o bem e castigar se fizer o mal.
LOGOMACO - Tudo o que dizes são frioleiras e lugares comuns! Vamos ao essencial, que é o que importa. Deus é infinito secundum quid, ou segundo a essência?
DONDINDAC - Não percebo cá disso.
LOGOMACO - Forte besta! Estúpido! Deus está nalgum lugar, ou fora de qualquer lugar, ou em toda a parte?
DONDINDAC - Não sei, não sei... Será como quiserdes.
LOGOMACO - Estúpido! Ignorante! Pode fazer com que o que foi não foi, e que um pau não tenha dois bicos? Vê o futuro como futuro ou como presente? Como procede Deus para fazer sair o ser do nada ou para aniquilar o ser?
DONDINDAC - Nunca pensei nisso...
LOGOMACO - Oh! Como és lorpa! Seja, há que ser humilde, ter a noção das distâncias. . . Dize-me cá, amigo, julgas que a matéria pode ser eterna?
DONDINDAC - E que me importa a mim que seja eterna ou não? Eu cá não tenciono existir eternamente! Deus sempre foi o meu senhor; deu-me a noção de justiça, hei-de obedecer-lhe; não pretendo de modo algum ser filósofo, quero ser apenas um homem.
LOGOMACO - Isto, com pinhas tão duras, dá um trabalhão! Bem, vamos lá a ver se, devagarzinho... por exemplo: quem é Deus?
DONDINDAC - Meu rei meu juiz e meu pai.
LOGOMACO - Não é nada disso que te estou a perguntar. Qual é a sua natureza?
DONDINDAC - Ser poderoso e bom.
LOGOMACO - Mas é corporal ou espiritual?
DONDIDAC - E como quereis que o saiba?!
LOGOMACO - O quê? ! Não sabes ao menos o que é um espírito?
DONDINDAC - Nem pouco nem muito! E de que é que isso me servia? Se o soubesse, seria mais justo? Seria melhor marido, melhor pai, melhor patrão, melhor cidadão?
LOGOMACO - Bem. Já estou a ver que tenho de te explicar duma vez por todas, tintim por tintim, o que é um espírito. Olha: um espírito é... é... assim uma coisa... é... Para outra vez te digo.
DONDINDAC - O meu medo é que me direis não aquilo que é mas o que não é. Agora, permiti-me que seja eu quem vos faça uma perguntinha. Aqui já há muito tempo, entrei num templo dos vossos. Explicai-me: por que pintais Deus com umas grandes barbaças?
LOGOMACO - Essa pergunta é muito difícil e necessita de muitas instruções preliminares.
Deste belo diálogo, retiro a ilação de que admirando os gregos, e não sendo da Cítia, concordo inteiramente com Dondindac. E com o seu Deus, criador e curador das coisas que nos rodeiam, independentemente da sua história, da sua natureza, e das suas qualidades.
Voltando ao tema da verdade, dou-me conta da mentira do Deus que em Roma nos é servido desde o concílio de Niceia pela igreja católica  que o nosso irmão Isaac Newton denominou de Anticristo, de “meretriz da Babilônia”, acreditando que todas as mentiras do mundo tinham começado nesse Concílio de 325, conduzido sob a égide do imperador Constantino, que impôs todos os dogmas de que a igreja se serviu para perseguir o livre pensamento, nomeadamente o pensamento de Deus, sempre coado pelos padres e bispos, tidos por únicos intermediários junto do Ente Supremo.
Mas então, sentindo a existência de Deus, quem é Ele, afinal?
Certa vez perguntaram a Albert Einstein, se ele acreditava em Deus. “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe”, respondeu ele, resposta que a mim também me serve.
Dizia o Deus do iluminista Espinoza:
“Pára de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida.
Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.
Pára de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa.
Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.
Pára de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau. O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria.
Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.
Pára de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não me podes ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho… Não me encontrarás em nenhum livro! Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho?
Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor.
Pára de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz… Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio.
Como te posso culpar se respondes a algo que eu pus em ti?
Como te posso castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez?
Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade?
Que tipo de Deus pode fazer isso?
Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti.
Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti.
A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia.
Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso.
Esta vida é a única coisa que há aqui e agora, e a única coisa que precisas.
Eu te fiz absolutamente livre.
Não há prémios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registo. Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.
Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho.
Vive como se não o houvesse.
Como se esta fosse a tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir.
Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei. E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não.
Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste… Do que mais gostaste? O que aprendeste?
Pára de crer em mim – crer é supor, adivinhar, imaginar.
Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti.
Quero que me sintas em ti quando beijas a tua amada, quando agasalhas a tua filhinha, quando acaricias o teu cachorro, quando tomas banho no mar.
Pára de louvar-me!
Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja? Me aborrece que me louvem. Me cansa que agradeçam.
Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo.
Te sentes olhado, surpreendido?… Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.
Pára de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim.
A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas.
Para que precisas de mais milagres?
Para que tantas explicações?
Não me procures fora!
Não me acharás.


Procura-me dentro… aí é que estou, batendo em ti.»

domingo, 28 de janeiro de 2018

Luís Pedro Viana



Vai para meia dúzia de anos que ele nos apareceu porta adentro, numa tarde cálida do meio do Verão, em que acontecia mais uma das costumadas tertúlias de poesia na Galeria Vieira Portuense. De lenço ao pescoço à moda de Salvador Dali, apresentava, como este, bigode de pontas afiadas que o surrealista de Figueres copiara de Diego de Velásquez.
Chegada a vez da declamação, tomou espaço a servir-lhe de palco e, em pose de teatro, tirou, sabe-se lá de onde, uns minúsculos altifalantes que ligou à corrente e a um aparelho, que servia de telefone, anunciando que as novas tecnologias também serviam a cultura. Perante a expectativa de todos, aquilo acendeu uma pequena luz vermelha, deu um silvo angustiante e apagou-se. À inquietação dos demais, juntou o autor a sua própria perplexidade, tal qual um Jacinto contrariado face à avaria da engrenagem que lhe deixara o assado encravado entre a cozinha e o sobrado do número 202, dos Champs-Élysées, de que se fala em “As Cidades e as Serras” de Eça de Queirós.
Recomposto, sem perder a pose de quem se acha bem acima da falibilidade das coisas terrenas, o pintor, escritor e poeta, mostrou naquele espaço o seu estro numa primeira de muitas vezes, já que nunca mais deixou de frequentar esta casa de arte:
“Na alegria de viver e de comunicação simples,
Fazia a beleza da Vida.
[…]
Dai-nos lugar junto dele
Quando for a vez da Eternidade!”

Luís Pedro Viana não nasceu em 1943. Nasceu muito mais tarde, naquela idade em que a humanidade descobre que “nem só de pão vive o homem”, que em Altamira ou em Chauvet começou a pintar nas cavernas e Alberto Caeiro começou a escrever:
“Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.”

Porque há um tempo em que a Bíblia se abre em Marcos e nos pergunta: “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se vai perder a alma?”
Armado com as armas que a vida lhe deu, nos bancos das escolas, no atelier de seu pai, nas sete partidas da vida, nas viagens pelo mundo, no estudo atento do que é ensinado nos museus, na confraternização com artistas dos vários mesteres, este português aqui, sem mestre mas com jeito, (como diria José Fanha), renascido em seus sonhos, é hoje um artista respeitado nas artes e nas letras, simples como os sábios, amante da natureza e do lado bom da vida, como ensinavam os epicuristas, podendo dizer como Salvador Dali “…estou pintando quadros que me fazem morrer de alegria, estou criando com absoluta naturalidade, sem a menor preocupação estética, estou fazendo coisas que me inspiram com uma profunda emoção e estou tentando pintá-los com honestidade”.
Entretanto, Moreira da Cunha, ele, sim, nascido em 1943, vai palmilhando a vida no seu condado, indiferente aos Invernos já vividos, porque, como dizia Epicuro de Patmos, “enquanto eu sou, a morte não é; e quando ela for, eu já não serei. Porque deveria temer o que não pode ser enquanto sou?”.