A história do dever é tão longa quanto a da humanidade.
Quando Deus criou Adão e Eva, logo lhes cominou o dever de não comerem o fruto proibido. Tantas árvores no Jardim Celeste e só aquela haveria de ter atrás de si a proibição.
Era um dever divino de que não se sabem os fundamentos, nem as finalidades como muitas outras coisas divinas.
Mas, para além desse dever, a vida no Paraíso decorria serena e farta, sem temores, sem angústias, sem qualquer tipo de necessidades, físicas ou psicológicas, porque Deus a tudo providenciava.
Se o barro que Deus utilizara na feitura do homem fosse de boa qualidade, Adão e Eva seriam de tal maneira perfeitos, que teriam a consciência de que deviam orientar o seu pensamento e a sua acção para o cumprimento do seu dever. Mas assim não aconteceu.
No dia em que infringiram tal dever, foram expulsos do Paraíso, votados ao desamparo, despidos de todas as certezas e seguranças, perante a incerteza do futuro.
Não admira, pois, que tivessem de se organizar, distribuindo entre si direitos e obrigações ditadas pela necessidade de sobrevivência, o que terá sido o cerne do direito das gentes.
Claro que nenhum deles ignorava que deveria comportar-se dentro dos seus direitos, com respeito pelos direitos do outro, sendo dever de cada um cumprir o que lhe era devido para garantir o respeito por tais direitos.
Porém, não foram precisas muitas mais páginas do livro da vida para que Caim matasse Abel por deformação de carácter.
Quantas tragédias, quantas injustiças, quantas iniquidades os homens não cometeram ao longo da sua alargada existência. Tantas, que o próprio Deus resolveu descer ao Sinai e entregar a Moisés as tábuas da Lei.
Amar a Deus sobre todas as coisas, foi o primeiro dos mandamentos. Porque neste amor de Deus está o apelo à perfeição do homem, já que tender para Deus é tender para lá da falibilidade dos homens, não devendo o homem invocar o Seu nome em vão e devendo festejá-lo condignamente.
“Honrarás pai e mãe”, assim se apelou no Sinai, para que se respeitasse uma ordem natural da tradição dos valores.
“Não matarás”, assim se garantindo o direito à vida.
“Guardarás castidade”, assim se apelando ao uso ordenado da sexualidade.
“Não roubarás” assim se garantindo a cada um o que é seu.
“Não levantarás falsos testemunhos” assim se firmando o direito à honra.
“Não desejarás a mulher dos outros” assim se impondo o respeito pela família.
“Não cobiçarás as coisas alheias”
Estes princípios tecidos em todos os Sinais de Oriente a Ocidente, do Norte ao Sul do planeta mais tarde ou mais cedo informaram todas as civilizações, como um ter-de-ser nascido das contingências da sobrevivência humana.
Claro que estes princípios por todos sabidos, intuídos e sentidos, não eram cumpridos por alguns, pelo que sempre se tornou necessário um chefe segregado pela comunidade, com a força necessária para fazer cumprir estas normas que a tradição se encarregava de fazer passar de geração em geração.
Houve-os com sabedoria bastante para conseguirem dirimir as questões que opunham interesses injustos aos justos interesses. Quem não se admira ainda hoje da competência de Salomão ao decidir dos conflitos de interesse nomeadamente quando, com muita sabedoria, decidiu entregar a criança à verdadeira mãe, na disputa entre a mulher justa e a mulher injusta?
Mas quantos chefes não erraram por incompetência, por soberba, por egoísmo, ou por qualquer outro interesse que nada tinha a ver com os interesses colectivos em nome de quem as normas se sedimentaram nos espíritos das gentes?
Porque no princípio o chefe era a lei, em vez de ser mero instrumento da sua aplicação.
Mas o espírito das gentes acabava por se rebelar contra o abuso.
E a torrente do direito natural, saído da natureza das coisas, vingou sempre ao longo dos séculos, como as águas de um grande rio, que ao longo do seu percurso pode encontrar obstáculos, mas nunca deixa de os vencer até alcançar o seu destino longínquo.
Quando Creonte proíbe a sepultura do irmão de Antígona, não invoca ela «aquelas leis não escritas, que não são de hoje, nem de ontem, mas que sempre existiram e existirão até à consumação dos séculos”?
Deve-se aos Romanos a criação do direito. Os princípios do Direito Romano ainda hoje informam os corpos jurídicos da maior parte dos países. Mas já no século terceiro Ulpiano proclamava que para lá da lei estão três princípios fundamentais: honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere; viver honestamente, não prejudicar ninguém e atribuir a cada um o que é seu.
Ao longo da sua história, a humanidade dotou-se de um corpo de princípios absolutamente necessário à regulação das tensões sociais. Os romanos chamaram-lhe moral. Mas os gregos, mais atentos às coisas do espírito, iam mais longe e fixavam na Ética dois sentidos: o derivado de Êthos, que definia a acção humana nascida no interior do sujeito humano, que mais tarde Tomás de Aquino haveria de ressuscitar; já o sentido derivado do Éthos tinha a ver com o conjunto de usos e costumes assimilados pela sociedade e estavam por trás da assimilação social de valores.
É a este conjunto de valores que o Direito vai buscar as suas normas. Todavia tais normas não se esgotam na letra dos códigos. Estão sempre em diálogo com aquele corpo social de valores, estando a sua aplicação condicionada pela interpretação dos princípios fundamentais vigentes nas sociedades, que uns denominam “direito natural” e outros chamam “direito das gentes”.
Todavia, não é esse direito das gentes que há-de remir a humanidade. Como se ensinava na “Escola Moderna” do catalão Francisco Ferrer, como dizia António Sérgio, como outros afirmam todos os dias, torna-se necessário construir o homem novo, que semeie a justiça e o gérmen da harmonia universal para que algum dia todos possamos estar à altura de Sócrates, no testemunho de Platão. Na verdade, quando Criton quis subornar alguns guardas para tirar Sócrates da prisão, este recusando explicou «que se deve mais veneração, obediência e carinho a uma pátria agastada do que a um pai. Que o dever é ou dissuadi-la ou cumprir seus mandados, sofrer quietamente o que ela manda sofrer, sejam espancamentos, sejam grilhões, seja a convocação para ser ferido ou morto na guerra. Tudo isso deve ser feito e esse é o direito – não esquivar-se; não recuar; não desertar do posto; mas, quer na guerra, quer no tribunal, em toda a parte, em suma, o dever é cumprir ou executar as ordens da cidade e da pátria ou obter a sua revogação pelas vias criadas do direito. É impiedade usar de violência contra a mãe e o pai, mas ainda muito pior contra a pátria do que contra eles."
Este interiorizado respeito pela princípios fundamentais que informam a vontade colectiva, há-de um dia derrotar todos os egoísmos e se não gerar o 5.º império que António Vieira pregava, há-de gerar o “Império do Espírito Santo” anunciado por Joaquim de Fiore.
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